A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Assim que a primeira gota salgada deslizou até ao canto dos
meus lábios, parou e chamou-me pelo nome do meu irmão mais velho: Mardoqueu!
Sempre acabaste por ouvir as minhas preces! Uma aura de chamas alvas envolvia a
sua face. Com um gesto solene, como se me estendesse um versículo da antiga
sabedoria, atirou-me um limão. Apanhei-o. Mas quando o meu olhar pousou sobre o
fruto, o que vi foi uma cadeia de palavras portuguesas meio delidas: as nossas
andorinhas ainda estão nas mãos do faraó. Ao passar uma segunda vez os meus
olhos por esta mensagem escrita no código dos cristãos-novos, ela elevou-se nos
ares e depois quebrou-se com um ruído tilintante. Surpreendi-me a olhar
novamente as chaves que tinha na mão. Lágrimas cálidas enevoavam-me a vista. A
porta para a visão tinha-se fechado. Lourenço segurava-me pelos ombros,
empalidecido e assustado. Inconscientemente, os meus lábios murmuravam palavras
tranquilizadoras. Para se poder compreender a revelação que me atingira, terei
de explicar as palavras hebraicas mesiras nefesh. O seu significado é
certamente a disposição para o sacrifício. O seu poder oculto reside na
tradição dos cabalistas de estarem dispostos a arriscar-se nem que seja a uma
visita aos infernos se com isso puderem ajudar não só a aliviar o sofrimento do
mundo como também a proporcionar uma reparação na Esfera Celeste. Com as chaves
a palpitar na minha mão, comecei a compreender pela primeira vez o sacrifício
de meu tio Abraão e como a ideia de mesíras nefesh tinha feito bater o
seu coração naquele ritmo tão apaixonado, se bem que frágil. E, por razões que
no correr desta narrativa se tornarão claras, vi também que a minha visão era
uma ordem sua para voltar para Portugal a cumprir a missão que ele me tinha
destinado desde sempre, um destino que eu não tinha seguido e nem sequer,
antes, entendido.
Começava ao mesmo tempo a compreender que, ao voltar para
Lisboa, me era dada a possibilidade de reparar o desvio do meu destino, de me
entregar ao meu voto de mesiras nefesh, pois o regresso haveria
seguramente de pôr em risco a minha vida. Com a Espanha nas garras da Inquisição (maldita)
e Portugal cada vez mais próximo das suas fogueiras, o meu retorno poderia bem
significar o fim da minha vida com a minha mulher, Letiça, e os meus filhos,
Zuli e Ari. Assim, foi com eles no espírito que voltei a pegar na pena. Queria
que todas as pessoas da minha família ficassem a saber as minhas razões para os
deixar e o que se tinha passado vinte e quatro anos atrás e imposto tais razões
ao meu coração. A história do crime que para sempre tinha coberto de trevas as
nossas vidas e a perseguição do misterioso assassino era demasiado longa e
intrincada para a ouvirem dos meus lábios. Nem eu queria correr o risco de
deixar por dizer o que quer que seja.
Escrevo ainda para afastar de nossa casa o ar gelado do
segredo, para que Zuli e Ari possam finalmente compreender as minhas respostas
vagas quando, sendo eles crianças e adolescentes, me questionavam sobre os
acontecimentos que tinham precedido a minha fuga de Lisboa. Não era fácil para
eles aceitar que o pai fosse alguém com um passado que muitos na nossa
comunidade de emigrantes judeus envolviam em sórdidas
especulações. Com lágrimas nos olhos e os punhos raivosamente cerrados, ouviram
chamar-me de homicida e de herético. Quantas vezes, também, tinha a minha
mulher sofrido com os rumores de que eu tinha sido seduzido em Lisboa por Lilit
disfarçada de fidalga castelhana e que ainda hoje esse demónio reinava no meu
coração?
Homicida, tinha-o sido. Confesso ter matado um homem e ter
encurtado os dias de outro. Os meus filhos poderão ler em que circunstâncias o
fiz e formar o seu próprio juízo. São já bastante crescidos para saberem tudo.
Herético, acho que não. Mas que o seja, terão sido então os acontecimentos que
brevemente relatarei que cravaram as setas da heresia na minha carne. Quanto ao
meu coração, deixo àqueles que amo o dizer quem nele é a rainha. Possa a
verdade, através destas páginas, vir sem receios ao de cima, como o apelo da
trombeta de um shofar saudando Rosh Hashona. E possa eu, também,
libertar-me finalmente dos meus derradeiros enganos e dos restos da máscara que
usei para esconder o meu judaísmo quando novo. É verdade, espero ainda aprender
muito sobre mim próprio à medida que a
pena siga as minhas recordações; não será certo que sempre que damos livre
curso à memória para sondar o passado somos sempre recompensados com tal
conhecimento da nossa alma?
É certo que a culpa pela minha ignorância e pelos meus erros, e outros pecados meus mais terríveis, que me acompanhou até ao meu exílio em Constantinopla ainda hoje
me persegue. Haverá os que dirão ser até essa a minha mais profunda motivação.
Mas, ao mesmo tempo que vou gravando estes caracteres neste pergaminho polido,
compreendo que o que me inspira é antes a possibilidade de falar através da
distância de décadas para outros mais, ainda por nomear, os meus netos ainda não nascidos e os de minha irmã Cinfa. A
estes nossos descendentes, gostaria de dizer: lede esta história e vereis
porque saíram de Portugal os vossos antepassados; o enorme sacrifício que por
vós fez o meu mestre; o que aconteceu aos judeus de Lisboa quando este século
não ia além dos seis anos cristãos. Para que vivais, as vossas memórias
deveriam apegar-se como órfãos a tais acontecimentos». In Richard Zimler, O Último Cabalista de
Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
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