segunda-feira, 2 de julho de 2018

Zorro. Isabel Allende. «Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora, riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano»

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O começo da lenda
Califórnia. 1790-1810
«(…) Uns dias mais tarde, o capitão Alejandro La Vega chegou a galope à missão. Desmontou de um salto no pátio, desfez-se da pesada casaca do uniforme, do lenço e do chapéu, e mergulhou a cabeça na artesa onde as mulheres enxaguavam a roupa. O cavalo estava coberto de suor espumoso, porque tinha carregado por várias léguas o cavaleiro com o seu equipamento de dragão do Exército espanhol: lança, espada, escudo de couro duplo e carabina, além dos arreios. De La Vega era acompanhado por um par de homens e vários cavalos que transportavam as provisões. O padre Mendoza saiu a recebê-lo com os braços abertos, mas, ao ver que só o acompanhavam dois soldados andrajosos e tão extenuados como as cavalgaduras, não pôde dissimular a frustração. Lamento, padre, não disponho de mais soldados do que este par de bravos homens. O resto do destacamento ficou na povoação de La Reina de los Angeles, que também está ameaçada pela sublevação, desculpou-se o capitão, limpando a cara com as mangas da camisa. Que Deus nos ajude, visto que Espanha o não faz, retrucou entre dentes o sacerdote. Sabe quantos índios atacarão? Há muito poucos aqui que saibam contar com rigor, capitão, mas, segundo os meus homens averiguaram, podem chegar a quinhentos.
Isso significa que não serão mais de cento e cinquenta, padre. Podemos defender-nos. Com que contamos?, inquiriu Alejandro La Vega. Comigo, que fui soldado antes de ser padre, e com outros dois missionários, que são jovens e corajosos. Temos três soldados adstritos à missão, que vivem cá. Também vários mosquetes e carabinas, munições, um par de sabres e a pólvora que utilizamos na pedreira. Quantos neófitos? Sejamos realistas, meu filho: a maioria não combaterá contra gente da sua raça, explicou o missionário. Quando muito, conto com meia dúzia de jovens criados aqui e algumas mulheres que nos podem ajudar a carregar as armas. Não posso arriscar as vidas dos meus neófitos; são como crianças, capitão. Trato deles como se fossem meus filhos. Bem, padre, mãos à obra, em nome de Deus. Pelo que vejo, a igreja é o edifício mais sólido da missão. Defender-nos-emos lá, disse o capitão. Durante os dias seguintes ninguém descansou em San Gabriel; até as crianças de tenra idade foram postas a trabalhar. O padre Mendoza, bom conhecedor da alma humana, não podia confiar na lealdade dos neófitos uma vez que se vissem rodeados de índios livres. Consternado, notou um certo brilho selvagem nos olhos de alguns deles e a falta de vontade com que cumpriam as suas ordens: deixavam cair as pedras, rasgavam-se-lhes os sacos de areia, enredavam-se nas cordas, entornavam-se-lhes os baldes de pez. Forçado pelas circunstâncias, violou o seu próprio regulamento de compaixão e, sem que lhe tremesse a vontade, condenou um par de índios ao cepo e a um terceiro aplicou dez chicotadas, para servir de exemplo. Depois mandou reforçar com tábuas a porta do dormitório das mulheres solteiras, construído como uma prisão, de modo que as mais audazes não saíssem para passear ao luar com os respectivos apaixonados. Era um edifício rotundo, de grosso adobe, sem janelas e com a vantagem adicional de se poder trancar por fora com uma barra de ferro e cadeados.
Ali encerraram a maior parte dos neófitos do sexo masculino, agrilhoados pelos tornozelos, a fim de evitar que na hora da batalha colaborassem com o inimigo. Os índios têm medo de nós, padre Mendoza. Julgam que possuímos uma magia muito poderosa, afirmou o capitão La Vega, dando uma palmada na coronha da sua carabina. Esta gente conhece de sobra as armas de fogo, embora ainda não tenha descoberto o seu funcionamento. O que na verdade os índios temem é a cruz de Cristo, retorquiu o missionário, apontando para o altar. Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora, riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano». In Isabel Allende, Zorro, O Começo da Lenda, Editorial Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-006-1.

Cortesia da EInapa/JDACT