A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Para reflectirem Moisés, de que outra cor poderiam ser? Meu
tio beijou a minha fronte. De hoje em diante serás meu aprendiz. Eu te ajudarei
a transformar espinhos em rosas e juro proteger-te dos perigos que espreitam o
caminho. As páginas, que são outras tantas portas, hão-de abrir-se ao nosso
toque. Como poderia então saber que um dia haveria de o negar tão
completamente? Imagine-se que alguém se encontra fora do tempo. Que o passado e
o futuro evoluem à sua volta e o impedem de se situar precisamente. Que o seu corpo, o seu
receptáculo, ficou tolhido, liberto da História. Porque é assim que me sinto.
Consigo ver claramente quando e onde o mal se desencadeou: quatro dias antes,
no vigésimo segundo dia de Nisan, na Judiaria Pequena no bairro de Alfama em
Lisboa. Estava uma manhã resplandecente, como uma pérola opalina do colar
daquele mês primaveril. Era o ano de 5266 para os cristãos-novos. O sexto dia
de Abril de 1506 para os malditos cristãos de alma e coração.
Da escuridão do amanhecer desta quarta-feira, escondido
nesta cave, recordo a alvorada de sexta-feira, os primeiros raios de sol como
que anunciando as notas iniciais de uma fuga insana. Escondida atrás de tais
notas, disfarçada na memória, encontra-se a face que procuro. O dia do nosso
primeiro seder da Páscoa ergueu-se fusco e seco, como todas as manhãs
ultimamente. Há mais de onze semanas que não recebíamos a benção da chuva. E
também hoje não choveria. A peste, essa, assediava-nos com calafrios os corpos
e as almas já desde a segunda semana de Heshvan, há mais de onze semanas. Os
médicos feitos à pressa de El-Rei Manuel I acharam que o gado era o ideal para
absorver as essências que pairavam no ar e a que atribuíam a epidemia e assim
duas centenas de vacas entontecidas pelo calor foram deixadas à solta a vaguear
pelas ruas.
O próprio rei já há muito que desertara desta desolação,
juntamente com a maior parte dos fidalgos. De Abrantes, três semanas antes,
tinha promulgado um decreto ordenando a construção de dois novos cemitérios
fora das muralhas da cidade para receber os que todas as semanas eram chamados
pelo Senhor. As almas dos mortos não se sentiam seguramente mais animadas com
tal gesto. E não se podia levar a mal se os vivos não vissem neste decreto
senão mais um sinal do vão pragmatismo e da cobardia do rei. Teria sido aí que
as coisas começaram a mudar? Certamente. O dia-a-dia começou a revestir-se de
uma ponta de cruel e desesperante loucura. Nos últimos três dias, vi um burro
caído que o dono cegou com a sua adaga, com os olhos a esguichar sangue e vi
uma menina que não tinha mais que cinco anos atirada aos guinchos do telhado de uma casa de quatro
andares.
Os pobres, para atenuarem os tormentos da fome, tinham dado
em comer uma papa de linhaça com água. Tinha acabado de fazer vinte anos e era
um pouco mais devoto do que seria desejável como prova a minha crença de que a
nossa cidade tinha sido generosamente dotada com o grande significado da Tora.
Para mim, em tudo havia uma terrível, eterna beleza e horror. Mesmo os pés
imundos dos mortos recentes que emergiam das serapilheiras onde eram
transportados nos carros pestilentos dos empestados possuíam uma graça triste e
reverente. Através deles os nossos pensamentos voltavam-se para a mortalidade
do Homem e para a nossa aliança com Deus. Meu tio Abraão era o único que tranquilamente
ignorava os pregadores escanzelados que corriam as ruas guinchando que Deus
tinha abandonado Portugal e que não faltavam mais que cinco semanas para o fim
do mundo (que poderia porém ser adiado, concediam, se as nossas dádivas em
moedas fossem generosas).
O cenho franzido pela irritação, disse-me : não achas que o Senhor
me haveria de dar um sinal se estivesse
para fechar o último portão da Esfera Terrena? Frei Carlos, um padre amigo da
família, não podia ainda contar-se entre esses desgraçados que tinham sucumbido
completamente à demência que se apoderara da cidade. Mas parecia ser apenas uma
questão de dias. A seca e a peste..., são filhos gémeos do Demónio! Confidenciou-me
ele num sussurro conspiratório, estávamos nós na arcada da Igreja de São Pedro.
Essa manhã tinha-lhe trazido o meu irmão mais pequeno, Judas, para a lição de
doutrina cristã. Estávamos os três a apreciar uma procissão de velas de
flagelados que fustigavam as próprias costas com açoites de couro com bolas de
cera nas pontas cheias de pedaços de lata e cacos de vidro colorido. Seguiam-se
os frades dos conventos de Lisboa desfraldando estandartes azuis e amarelos
bordados com imagens do Nazareno crucificado. Atrás, com um ar imponente, os
membros dos grémios, as roupagens de seda enfunadas, sustentavam os andores com
imagens de santos». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
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