sábado, 21 de julho de 2018

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Será que, no fim, acabarão por se fundir completamente? Cairei dentro de uma paisagem excessivamente rica em sons, visões e toques…»

jdact e wikipedia

«(…) Despejou água fervente sobre as folhas de urtiga num círculo lento e perfeito, e aquela precisão me encantou. Voltei a me sentar. Desculpe a minha curiosidade, Erik, mas por que voltou para nós?, perguntou. Não sei bem. Mas qualquer resposta que lhe desse não faria muito sentido, a menos que lhe contasse o que me aconteceu no gueto; e, acima de tudo, teria de lhe falar do meu sobrinho. E então, o que o impede? Podemos passar o dia inteiro juntos, se quiser. Surgiu-lhe um brilho maroto nos olhos. Apesar do desgosto e da solidão, Heniek parecia ansioso por uma nova aventura. Conto-lhe daqui a pouco, respondi. O facto de ter conseguido falar com você…, deixou-me debilitado. Heniek fez que sim com a cabeça, compreensivo. Depois de beber o seu chá, sugeriu que fôssemos dar um passeio. Levou um saco de batatas para a irmã, que dividia com mais seis inquilinos um apartamento de dois cómodos perto da Grande Sinagoga, e a seguir fomos ouvir Noel Anbaum cantar à porta do teatro Nowy Azazel. O seu acordeão fez dançar diante dos meus olhos um enxame de borboletas rubras e douradas, uma sensação estranha e magnífica, mas a que me tenho acostumado ultimamente; os meus sentidos agora fluem muitas vezes juntos, como as tintas de um vitral a transbordar dos seus contornos. Será que, no fim, acabarão por se fundir completamente? Cairei dentro de uma paisagem excessivamente rica em sons, visões e toques, e sentir-me-ei incapaz de fazer às cegas o caminho de regresso a mim próprio? Talvez seja dessa maneira que a morte vai finalmente se apoderar de mim.

Heniek, enquanto ouço o zumbido paciente do candeeiro de petróleo pousado entre nós e observo a dança trémula da sua chama azul, a gratidão que me invade, me abraça, como fez Adam quando lhe disse que havíamos de visitar Nova York juntos. E o contentamento que sinto por ter conseguido falar e sussurra ao ouvido: apesar de todas as tentativas dos alemães para refazer o mundo, as leis naturais continuam a existir. Por isso, tenho de lhe contar a minha história pela ordem certa, senão ainda me vou sentir tão perdido quanto Hansel e Gretel. E, ao contrário dessas crianças cristãs, não tenho migalhas de pão para marcar o meu caminho de regresso a casa. Porque não tenho casa. Foi isso que me ensinou o caminho de volta à cidade em que nasci. Primeiro vamos falar de como Adam desapareceu, e como voltou para nós sob forma diferente. E depois vou contar-lhe como Stefa me fez acreditar em milagres.

No último sábado de Setembro de 1940, aluguei uma carroça puxada por um cavalo, o respectivo cocheiro e dois homens pagos à diária para fazerem a mudança do meu apartamento junto ao rio para o de um quarto da minha sobrinha, situado no velho bairro judeu da cidade. Decidira sair de casa antes da criação oficial de um gueto, porque já nos fora proibido circular em grande parte de Varsóvia, e não precisava de uma bola de cristal para saber o que viria a seguir. Queria ser eu a estabelecer as condições do meu exílio, e poder escolher quem iria para o meu apartamento. Já se tinham mudado para lá a filha de um cristão vizinho meu, estudante universitária, e o marido dela, advogado. Com o meu melhor casaco de lã, pus-me a andar literalmente atrás da carroça, certificando-me de que nada escorregava para o chão lamacento. Meu velho amigo Izzy Nowak juntou-se a mim, na esperança de escapar por algum tempo da atmosfera deprimente da sua casa; a mulher dele, Róza, sofrera uma trombose cerebral no início do mês e já não o reconhecia mais. A irmã mais nova de Róza mudara-se havia pouco tempo para lá, a fim de ajudar a cuidar dela». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT