«(…) Piankhi apreciava a coragem de Puarma. E este último estava
convencido que aquele encontro nada tinha a ver com o acaso. Majestade...
Devemos preparar-nos para um conflito? Não... Ou, pelo menos, não sob a forma
que imaginas. O inimigo nem sempre ataca onde esperamos. Na minha própria
capital, há quem deseje que eu me ocupe menos dos deuses e mais dos seus
privilégios. Reúne os teus homens, Puarma, e coloca-os em estado de alerta. O
capitão dos archeiros curvou-se perante o seu rei e partiu a correr para
Napata, enquanto Piankhi continuava a contemplar a paisagem atormentada da
catarata. Da fúria das águas e da eternidade implacável da rocha, o faraó negro
absorvia a energia indispensável para cumprir a sua missão. A felicidade...
Sim, Piankhi tinha a sorte inestimável de saborear a felicidade. Uma família
feliz, um povo que comia o que queria e se alimentava também dos dias
tranquilos que se escoavam ao ritmo das festas e dos rituais. E ele, o faraó
negro, tinha o dever de preservar essa serenidade.
A pureza do ar tornava perceptível o menor ruído. E Piankhi
conhecia bem aquele: o choque regular dos cascos de um burro no carreiro. Um
burro que transportava Cabeça-fria, escriba de elite e conselheiro de Piankhi.
Um burro que se alegrava por ter um dono leve, dado que Cabeça-fria era um anão
de rosto severo e busto admiravelmente proporcionado. O escriba habitualmente
não se afastava do seu gabinete, o centro administrativo da capital. Se tinha
empreendido aquela viagem, a razão devia ser séria. Até que enfim que vos encontro,
Majestade! O que se passa? Um acidente no estaleiro, Majestade. Um acidente
grave.
Dominando Napata, a capital do faraó negro, os mil metros
da montanha pura, o Gebel Barkal, abrigavam o poder invisível do deus Amon, o
Oculto, que estava na origem de toda a criação. Situada quinze quilómetros
para jusante da quarta catarata e rodeada de desertos, Napata encontrava-se no
entanto no meio de uma planície fértil à qual iam dar diversas pistas de
caravanas. Desta forma, os súbditos de Piankhi não tinham falta nem de produtos
de primeira necessidade, nem de iguarias requintadas, nem mesmo de artigos de
luxo. Mas os caravaneiros não estavam autorizados a instalar-se em Napata, a
não ser que mudassem de profissão. Apenas eram admitidos para uma breve estada,
o tempo de vender as suas mercadorias e repousar um pouco. Todos sabiam que
Piankhi dispunha de imensas riquezas, mas eram reservadas para o embelezamento
dos templos e manutenção do bem-estar da população. Os raros casos de corrupção
tinham sofrido pesadas penas, indo até à condenação à morte. O faraó negro não
tolerava as faltas graves à regra de Maât e muito poucos imprudentes se
arriscavam a sofrer a sua cólera.
Montanha isolada em pleno deserto, o Gebel Barkal fascinava
Piankhi desde a infância. Quantas horas tinha passado junto das falésias
abruptas que dominavam a margem direita do Nilo! Com o correr dos anos,
formara-se no seu coração um projecto insensato: fazer falar a montanha pura,
talhar o pico isolado, num dos seus ângulos, para fazer dele o símbolo da
monarquia faraónica. O empreendimento apresentava-se como perigoso, mas Piankhi
entregava-se a ele há dois anos com a colaboração de voluntários. Como o pico
estava separado da massa da montanha por uma ravina com a largura de doze
metros e a profundidade de sessenta, fora necessário escavar buracos na rocha
para enfiar traves e montar um gigantesco andaime com o auxílio de aparelhos de
elevação rudimentares mas eficazes.
Seguindo as indicações do faraó mestre-de-obra, os escultores,
sentados em estreitas plataformas, tinham talhado o pico do Gebel Barkal De
leste, as pessoas julgavam ver um enorme uraeus, a cobra fêmea erguida e
adornada com a coroa branca; de oeste, a coroa vermelha e o disco solar. No
extremo do cume tinha sido gravada uma inscrição hieroglífica em honra de Amon.
Um ourives fixara também um painel coberto de folhas de ouro para reflectir a
luz da madrugada e evidenciar de forma deslumbrante, todas as manhãs, o triunfo
da luz sobre as trevas. Por baixo do painel, um nicho guardava uma serpente uraeus
em ouro. Os trabalhos estavam a chegar ao fim e tinham sido içados os últimos
cestos de pedras e argamassa destinados a modelar a montanha para lhe dar o
aspecto pretendido. Conta-me o que se passou pediu Piankhi a Cabeça-fria. Um
escultor quis contemplar a sua obra de perto e não respeitou as regras de
segurança. A meia altura, escorregou numa viga. Queres dizer...? Morreu,
Majestade. E o seu assistente não é melhor do que ele: lançando-se de forma
estúpida em socorro do patrão, foi dominado pelas vertigens e não pôde fazer um
gesto». In
Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
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