Inexcedido
amor
Um Segredo da Polícia
«Foi de excepcional invernia aquele Novembro de 1807. As águas da chuva, turvas como levadas,
despenhavam-se pelas ruas íngremes de Lisboa, alagavam os bairros centrais da
cidade e, de hora para hora, transmudavam as praças em lagunas. Da província
chegavam notícias consternadoras, notícias de cheias enormes, de temporais violentos
como por muitos anos não houvera no país, nem mesmo nos invernos formidáveis de
que os velhos ainda se lembravam! Um desfecho de horrores naquele ano de
atribulações políticas! Uma angustiadora previsão de fome para o ano que se
avizinhava, e quem podia adivinhar com que outros trágicos desastres.
Sabia-se em Lisboa que um exército francês
caminhava para a fronteira de Portugal, ou talvez a houvesse já transposto, sob
o comando do general Andoche Junot, que dois anos antes fora embaixador de
Napoleão junto da Corte portuguesa. Mas no Paço e nas secretarias de Estado sabia-se
muito mais, pois tinham a certeza de que as tropas francesas vinham já pelo
país dentro a marchas forçadas. E com o famoso sabreur de Lonato um avultado número de tropas espanholas.
NOTA: Era o exército denominado primeiro corpo
de observação de Gironda. Concentrara-se em Baiona e entrara em Espanha com
um efectivo de 24.133 homens, que traziam 36 bocas de fogo e 3.274 cavalos. Com
a infantaria francesa vinham dois batalhões de suíços e uma legião de
hanoverianos. A Espanha cooperava na invasão de Portugal com três divisões,
cujo efectivo total deveria ser de 27 000 homens. Uma destas divisões
acompanharia as tropas de Junot; as outras ocupariam as províncias de Entre
Douro e Minho, Alentejo e Algarve.
Naquela situação esmorecedora, a pobreza de homens
do governo ainda maior que a pobreza dos recursos materiais, desprecavido,
estonteado, de rastos, a guerra a fuzilar no horizonte, as cheias a levarem-lhe
o pão, vencido sem ter batalhado, sem essa heróica extrema-unção dos povos que
morrem combatendo, o povo português lembrava um condenado à morte, de joelhos,
ao desamparo, à espera do carrasco no seu patíbulo de ignomínias, por alva e
mortalha a cingir-lhe o corpo a sua velha bandeira de remotas epopeias. Um povo
de três milhões de almas que se confrangia sem uma voz heróica de alento e sem
um cérebro dirigente que lhe mostrasse, ao menos, para que lado podia buscar a
morte sem cair de costas, em esgares de bobo, contra a sua própria história! A
enxurrada nas misérias políticas era ainda imensamente maior e mais funesta que
a outra das águas lodosas, naquela invernia excepcional!
Mas, enfim, nessa tortura de vergonhas, de
hesitações, de hipóteses, num sonho idiota de paz, com os invasores já dentro
das fronteiras, com o simulacro de um exército em arremedos de concentração
para uma campanha de comédia, enquanto a Corte ia arrumando os baús para os
primeiros alarmes da fuga; nessa conjuntura, terrivelmente singular e
grotescamente deprimida, a vida na capital oprimira-se, mas não se imobilizara.
Caía em tudo a sombra lúgubre daqueles dias, como se fosse de eclipse pavoroso;
mas em Lisboa vivia-se, tinha
até maior intensidade a luta egoísta dos interesses individuais; eram como
dantes, na mesma febre, o amor e o ódio.
A chuva estancara a meio da tarde daquele dia tempestuoso.
Como num assomo de generosa piedade, o sol rasgara contra as montanhas e contra
o mar os negrumes de um céu funerário e atirara para o lamaçal das ruas um jorro
da sua luz doirada e pálida». In António Campos Júnior, A Filha do Polaco,
romance histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1960.
Cortesia de Romano Torres/JDACT