D. Luiz e a Pelicana
« - Dizei-me senhor - prosseguiu ele: como é que os sentidos versos que
fizestes e ocultais, têm artes de nos arrebatar docemente, e de pôr-nos no
ânimo sensações desconhecidas?... Já amaste alguma vez como Dom-Duardos?...
Já no vosso caminho topastes alguma linda Flérida?... Não! – Respondeu sentidamente
o infante. Flérida é o vago… É o desconhecido... É um capricho… É um desejo...
João de Castro confessou-se intimamente vencido por este singular arranco metafísico,
e ficou mudo como os môrros revestidos de aveludada relva, que os seus possantes
solípedes impiedosamente calcavam. Luiz fitou-o a furto, e notou a confusão em que
o havia deixado a resposta que lhe dera.
- Dizei-me - perguntou-lhe o
moço príncipe. Nunca ouvistes falar na Egéria da antiga Roma? - Era uma célebre ninfa que inspirava o velho
Numa. - Pois eu, como Numa Pompílio, sinto-me preso às seduções de uma outra
ideal Egéria. – Ah!... Ah!... Ah!... deixai-me rir,senhor. - Será motivo para
chufa, um afecto tão inocente?! – Perdão. Eu não sei rir de escárnio, e muito
menos quando se trata de afectos vossos… que são sempre imaculados! Mas quem vai
rejeitado, dia a dia, princesas e rainhas tão belas como poderosas…
NOTA: O infante Luiz rejeitou a mão de Maria Tudor, rainha de Inglaterra,
e a da princesa Edwiges, mais tarde rainha da Polónia.
- Não é apto para se apaixonar
por Egérias imaginárias, - não é assim João?... Pois apaixonei-me eu. João de Castro escutava atentamente. Fazia-lhe
estranheza aquela linguagem do jovem príncipe, que não compreendia bem. Luiz
deu-se pressa em desfazer-lhe a ostensiva confusão. – Vejo que vos embaraçaram
as minhas revelações... Pois bem. Ides saber por completo o meu mais íntimo
sigilo. – Como poderei corresponder a tamanha honra, senhor? - É muito fácil, e
difícil. Fácil, se guardardes o meu segredo, como se guardam as sagradas
fórmulas no interior de um sacrário; e difícil, se me ajudardes a realizar o
meu sonho... meu desejo.
- Como?!... - É que ainda não
vi, nem ouvi, aquela por quem me apaixonei. João de Castro fitou
suspeitosamente o interlocutor. Custava-lhe a crer que estivesse ali aquele
príncipe de espírito esclarecido… aquele príncipe que fora o orgulho de um grande
mestre… aquele príncipe de vinte e três ridentes primaveras, tão respeitado por
velhos e rapazes… aquele príncipe, enfim, que era um dos mais suaves trovadores
da corte. - Ainda me não compreendestes, João? - Senhor, não! - Amo, e não sou
amado! - Será possível?! Desenhou-me o cérebro no coração a imagem de um ente
peregrino, que não vi ainda personificado. E amo a quimera… o vago... o desconhecido!...
E jornadeio na esperança de encontrar a realização deste sonho febril,
que não é um pesadelo, mas que me deixa em luta com essa visão querida, cujos
dedos vaporosos me apertam e torturam. - Mas... o que desejais de mim, senhor?
- Que me ajudeis a procurar a realização desse ideal, percorrendo comigo o
mundo até a encontrarmos. - Percorrerei!... - Está pactuado». In J.
A. Oliveira Mascarenhas, P Prior do Crato, romance histórico, ilustrações de
Bemvindo Ceia, Typ. Lusitana-Edirora de Arthur Brandão, Lisboa, 1902.
continua
Cortesia de Typ. Lusitana/JDACT