Prefácio
«A memória da mãe de Afonso Henriques, D. Teresa, tem sido tratada, ao longo
dos tempos, por parte de sucessivas gerações, com sentimentos de desconfiança e
de reserva. Tal deve-se ao facto de ser muito insuficiente o conhecimento
histórico que existe generalizadamente sobre o papel efectivo de D. Teresa no seu tempo, o que tem aberto
caminho à lenda e à simplificação. Uma melhor compreensão da personagem pelo
progresso da historiografia contemporânea tem permitido ultrapassar o, traços
caricaturais e até injustos que ainda persistem, um a vez que a partir de
documentação coeva e de uma análise crítica do que se conhece é possível
encontrar uma outra visão sobre a figura da filha de Afonso VI e mulher do
conde de Portucale, Henrique de Borgonha.
A recente biografia de Afonso Henriques, da autoria de José Mattoso
(2006) constituiu, aliás, na
sequência de aprofundada investigação sobre a época, um passo muito importante
para o melhor esclarecimento sobre um período pouco conhecido e sempre envolto
em mitos e espessa névoa, perturbadores de uma análise serena das
circunstâncias.
Sabemos como e difícil, no entanto, contrariar ideias feitas e consolidadas
ancestralmente e basta lembrarmo-nos do episódio recente da discussão a propósito
do lugar de nascimento de Afonso Henriques. Ele revela, por um
lado, a mitificação existente em torno da figura do rei fundador e, por outro,
a resistência à historiografia crítica, tantas vezes confundida com ameaça à
tradição ou com a colocação em causa da honra de uma comunidade local. Contudo,
nem a mitificação nem a honra podem estar em causa quando se investiga, com
seriedade científica, tudo o que diz respeito a um acontecimento ou a uma
personagem histórica. Também nos lembramos da enorme celeuma causada quando, a partir
de uma investigação rigorosa, Alexandre Herculano pôs em causa os
mitos que envolviam o chamado milagre de Ourique.
No caso de D. Teresa, também
estamos perante fenómenos conexos com aqueles que referimos, como a mitificação
de acontecimentos e as questões de orgulho identitário. Sobretudo depois do
episódio de S. Mamede (1128), a figura
da mãe do fundador está envolta, no imaginário colectivo, por uma carga negativa
que deve ser analisada com serenidade e distância, pois só desse modo poderemos
compreender melhor a evolução histórica que correspondeu à independência de
Portugal e ao reconhecimento papal da nova nação. Para perceber melhor esse
momento inicial, não é possível, porém, deixar de reconhecer o importante papel
de D. Teresa, ao lado do conde Henrique e, depois da sua morte,
na estabilização militar e administrativa dos condados de Portucale e de Coimbra. Henrique
foi um chefe político e militar que se impôs num meio muito complexo, pleno de
dificuldades, onde era necessário atender a várias ambições e diversos jogos de
poder sentidos especialmente no reino de Leão e na Galiza. No entanto, não se
deixou perturbar quanto ao objectivo de avançar com a conquista para Sul,
fixando uma primeira meta na consolidação da linha do Tejo e procurando estabilizar
uma presença civil e militar eficiente, em especial relativamente às populações
moçárabes dos concelhos meridionais. Henrique de Borgonha foi, assim, um
caudilho de cavaleiros, monges e clérigos de origem francesa, que pôde
aproveitar com grande inteligência, os equilíbrios existentes, não só partindo
da fragilidade circunstancial dos reinos taifas, mas também limitando o poder
dos nobres e do alto clero, através de uma aliança com os municípios e com as
novas ordens religiosas militares, cuidando da normalização económica e social,
que permitisse um povoamento adequado à missão da reconquista cristã». In Marsilio
Cassotti, D. Teresa, A Primeira Rainha de Portugal, Prefácio de G. Oliveira Martins,
Attilio Locatelli, A Esfera dos Livros, 2008, ISBN 978-989-626-119-1.
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