sábado, 16 de março de 2013

Alberto Feio. Daqui Nasceu Portugal. «Se ‘Paio Mendes’ guiou o infante até à vitória portuguesa, o seu sucessor “João Peculiar” foi o grande, o formidável obreiro político da independência»


João Peculiar
Cortesia de wikipedia e jdact

«A Rainha e Fernando Peres, com parentes e amigos da Galiza, ajuntara homens de armas para reduzir o moço Infante, que já tinha de sua mão castelos e terras do Condado. A meus olhos se figura essa magnífica arrancada de combatentes, que vão fundar a independência portuguesa. Vejo o Infante, mocetão hercúleo de dezassete anos, face sanguínea em que desponta uma penugem doirada, saltar para a sela mourisca de arções prateados e peitoral de pingentes, que cobre seu corcel de batalha. Imitam-no os cavaleiros, movimenta-se a peonagem e toda a hoste vai alegre, caminho de Guimarães, o mais forte castelo do Condado.
Dias passados, está à vista o pendão de D. Teresa, cercado de estrangeiros, indignos et exteros natione. O Infante organiza suas azes para a batalha. Veste loriga de couro cru, recoberta de escamas de ferro brunido e luzente, cujo capuz, coberto pelo elmo, lhe esconde a cabeça ruiva. Na mão brilha o montante de pomo doirado com guarda em cruzeta maciça e recurva, placada de prata e oiro. É domingo, dia de S. João; e queima o sol do solstício. Numa arrancada, o arraial em que tremula o pendão do infante, numa vertigem de esquadrões, numa reboada de lanças e montantes, faulhando cintilações, cai como uma tempestade sobre as alheias gentes e nas mãos da valorosa hoste portuguesa ficam a Rainha e o conde de Trava.
Nessa gloriosa tarde, a espada de Afonso Henriques talhou a Pátria Portuguesa.
Estava em rijas mãos o montante que a havia de manter, alargar e consolidar. Luta contra Castela, luta contra o sarraceno, luta diplomática. O grito de guerra, S. Tiago esforçava-o no combate à moirama. Era o prestígio da lenda de Clavijo, onde Ramiro I viu o Apóstolo varrer os infiéis, desfraldando bandeira branca, onde sangrava uma cruz. E a cruz de S. Tiago passou a símbolo. Quem atentar na iconografia medieval em que figura essa cruz e reparar no primitivo brasão português, pode ver a sua origem numa estilização da cruz de S. Tiago. A tenacidade na luta, o ânimo forte do príncipe e a indomável valentia dos guerreiros não bastaram para a consolidação nacional. Era necessário tornar a igreja independente de tutelas estranhas.
Desde o tempo dos godos, que a mitra de Toledo exercia supremacia sobre as outras metrópoles eclesiásticas. Invocando essa tradição, Bernardo, arcebispo de Toledo, obtivera do papa Urbano II, pela Bula Cuncti Sanctorum, de 1088, o título e dignidade de Primaz das Espanhas. Enquanto não foi necessário, Braga aceitou o facto sem disputa. Mas ao passo que se caracterizava a formação portuguesa, seguiam as resistências dos metropolitas bracarenses à autoridade que sobre eles pretendiam exercer os arcebispos de Toledo. As fases dessa longa contestação, diz Herculano, acompanharam as do estabelecimento da independência de Portugal.
Sabida é a confusão que no século XII havia entre os Concílios e as cortes. Nos concílios promulgavam-se leis civis a que o clero ficava obrigado. Reconhecida a primazia do arcebispo Toledano, ficaria este com o direito de convocar os bispos portugueses para concílios onde se legislasse contra a independência. Remédio? Solicitar um primado para Portugal? Como, se o papado não aceitava a nova monarquia com receio do enfraquecimento cristão, em benefício dos filhos de Mafoma?
Uma única solução:
  • questionar o direito de primazia. Três homens que sucessivamente ocuparam a Mitra de Braga, Maurício Burdino, Paio Mendes e João Peculiar, inteligentemente lutaram pela independência da igreja portuguesa, com não menos valor do que aqueles que com a espada criaram o Estado.
Faltavam os títulos? Forjavam-se. É numa destas questões, num processo contra Compostela, que aparece o queixume de que eram falsos os documentos do Liber Testamentorum de Braga. Se Paio Mendes guiou o infante até à vitória portuguesa, o seu sucessor João Peculiar foi o grande, o formidável obreiro político da independência.
  • é ele que aproxima Afonso Henriques do papado, na época da grande influência das teorias de Gregório VII;
  • é ele que vê que sem a união com o Pontífice é impossível levar a cabo a obra encetada; é ele que com sacrifícios, incluindo o da suspensão do exercício pastoral, conduz as difíceis negociações que levam, afinal, ao reconhecimento duma Pátria, livre e independente.
São trinta e sete anos de combates, conduzidos com notável zelo e superior inteligência. Ao lado de Afonso Henriques é a mais alta figura da fundação de Portugal, e bem merece seu nome ficar ligado à consagração da História de povo livre, que se gerou no Minho. Terra do Minho! No esporão de teus montes, em centos de castros e citânias, foi porventura lançada a semente da nossa independência. Nos flancos das suas colinas, em seus campos ribeirinhos e fecundos, modelados por milhares e milhares de lavouras sucessivas, a semente germinou e floriu».
FIM

In Alberto Feio, Daqui Nasceu Portugal, Câmara Municipal de Braga, 1964.

Cortesia da CM de Braga/JDACT