sexta-feira, 15 de março de 2013

Bom Dia Camaradas. Leituras. Ondjaki. «Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra, coisa é o povo. Mas o mais chato de tudo era que tinha mesmo que se fazer os trabalhos de casa porque era o monitor que controlava isso no início da aula»

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« - Mas ainda não sabes da melhor... - o Murtala chegou perto de mim. - O quê então? - Ela taua a chorar e bazou pra, casa!!! – o Murtala também estava a rir à toa. - Deu borla só por causa. disso! Nós tínhamos aula de Matemática, era com o professor Ángel. Quando ele entrou, estava chateado ou triste. Eu dei o toque no Murtala, mas não podíamos rir. Antes de começar a aula, o camarada professor disse que a mulher dele estava muito triste porque os alunos tinham sido indisciplinados, e que num pais em reconstrução era preciso muita disciplina. Ele também falou do camarada Che Guevara, falou da disciplina e que nós tínhamos que nos portar bem para que as coisas funcionassem bem no nosso país. A sorte foi que ninguém queixou o Célio e o Cláudio, senão com isso da revolução eles tinham mesmo apanhado falta vermelha.
No intervalo a Petra for dizer ao Cláudio que eles tinham de pedir desculpa na camarada professora, porque ela era muito boa, era cubana e estava em Angola para nos ajudar. Mas o Cláudio não gostou nada de ouvir a Petra, e disse-lhe que só tinha cumprido a ordem dela, que ela tinha dito para eles se quedarem e então eles atiraram-se para o chão. Todos gostávamos do professor Ángel. Ele era muito simples, muito engraçado. No primeiro dia de aulas ele viu o Cláudio com um relógio no pulso e perguntou se o relógio era dele. O Cláudio riu e disse que sim. O camarada professor disse mira, yo trabajo desde hace muchos años y todavía no tengo uno, e nós ficámos muito admirados porque quase todos na turma tinham relógio. A professora de Física também ficou muito admirada quando viu tantas máquinas de calcular na sala de aula.
Mas não era só do professor Ángel e da professora Maira. Nós gostávamos de todos os professores cubanos, também porque com eles as aulas começaram a ser diferentes. Os professores escolhiam dois monitores por disciplina, o que primeiro gostámos porque era assim uma espécie de- segundo cargo, por causa do delegado de turma, mas depois nao gostámos muito porque para ser monitor había que ayudar a los compañeros menos capacitados, como diziam os camaradas professores, e tinha que se saber tudo sobre essa disciplina e não se podia tirar menos que 18. Mas o mais chato de tudo era que tinha mesmo que se fazer os trabalhos de casa porque era o monitor que controlava isso no início da aula. Claro que ir dizer ao professor quem tinha feito a tarefa e quem não tinha feito, às vezes dava luta no intervalo, o Paulo que o diga quando lhe levaram no hospital com o nariz a sangrar.
No fim da tarde a camarada directora veio falar connosco. Nós gostávamos quando entrava alguém na sala de aulas pois tínhamos que nos pôr de sentido e fazer aquela cantoriazinha, que uns e outros aproveitavam já para berrar: bua taaardeeeee… camarádaaaaa... directoraaaaaaa. Então ela veio avisar que íamos ter uma visita-surpresa do camarada inspector do Ministério da Educação. Que ela sabia que ia ser por um destes dias mas que tínhamos que nos portar bem, limpar a escola, a sala, as carteiras, vir apresentáveis, acho que foi isso que ela disse, e que o resto os professores depois explicavam.
Ninguém disse nada, nem ninguém perguntou nada, Claro que só nos levantámos quando a camarada directora disse então até amanhã, e este até amanhã não era tão ao calhas como isso, porque seria diferente ela dizer até para a semana, então lá nos levantámos e dissemos bem alto: atéééééééeeé... manhãããããã... camaradaaaaaaaa directoraaaaaaaaaIn Ondjaki, Bom Dia Camaradas, Editorial Caminho, Lisboa, 2003, ISBN 972-21-1524-3.

Cortesia de Caminho/JDACT