O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«Era em Abril de 1494. O dia
amanhecera formosíssimo. Cruzavam-se nos ares bandos de pássaros, chilreando a
sua jubilosa alvorada, por cima da cidade inundada de luz e cingida de flores,
no seu recosto de colinas. Lisboa despertava ridente por detrás da sua
enegrecida muralha medieval. O sol punha-lhe de alto um diadema de oiro e
acendia vivíssimas centelhas multicores nos coruchéus de azulejo e nos vidros
corados dos paços da Alcáçova, o remoto alcáçar dos valis muçulmanos, sobre o morro
soberbo do Castelo. Faiscavam os vitrais e os coruchéus da Sé, a velha mesquita
grande da Lissibona moira, e a sua negra torre quadrangular avulta
arrogante e forte, como a torre de menagem da Kasba (o terramoto de 1755 destruiu quase completamente a
velha Lisboa, e a restauração Pombalina apagou-lhe o cunho antigo. A Sé reedificada
em pouco se parece com a antiga).
Recorta-se no azul puríssimo do céu a cruz de ferro dos grandes
templos. O Carmo, quase isolado, ergue altivo o seu vulto gótico, alvo como se
fora o manto de um templário. Por entre a casaria branca, de telhados
moiriscos, muito vermelhos, debruçam-se dos quintais as roseiras em flor e os
laranjais de pomos de oiro, como num trecho de paisagem aldeã. Deixando cair os
seus fulgores sobre a face musgosa dos cubelos e quadrelas da muralha secular,
como um autocrata omnipotente podia deixar cair a fímbria do manto esplendoroso,
o sol subia no horizonte, e, atirando a sua esmola de luz às húmidas ruas da
Alfama, estreitas como os corredores de uma bastilha, ia sacudir a juba
triunfal sobre as águas do Tejo, a reflectirem o céu, tranquilas como as águas
de um lago.
E, todavia, a peste, uma trágica forasteira antiga, opunha a esta
paisagem deslumbradora o contraste brutal dos lares cobertos de luto e dos
corações espedaçados de dor. Mas nas grandes cidades não há infortúnios individuais
que interrompam a luta pela vida, nem angústias de alguém que se imponham aos
impulsos da multidão. Dura pouco a mágoa pública e, volvido o primeiro momento
de surpresa e de pavor, as cidades retomam a sua fisionomia normal; a morte é
como um hóspede com que todos contam e a ninguém causa estranheza, e a eterna
comédia de júbilos e dores de santas e de ridículas paixões, de supremas felicidades
e de supremos infortúnios, comédia dantesca de triunfadores e de vencidos,
prossegue na sua interminável exibição.
A peste era uma antiga conhecida de Lisboa. Tivera-a, juntamente com os
soldados de Castela, em volta das suas muralhas, nos últimos anos do século
XIV, e chegara-lhe o ânimo para suportar o flagelo e repelir o invasor. Lisboa resignara-se
e como que estava agora conformada com o seu pavoroso hóspede. Às vezes, por
desafogo, e qualquer recrudescência mais violenta do flagelo, vociferava
enraivecidamente contra os judeus, na sua qualidade de agentes maléficos da epidemia;
perseguia-os, dava-lhes morte cruel como a lobos vorazes, e depois, ainda a
espumejar ódios e a escorrer sangue, ia cair de joelhos nos degraus dos
altares, a implorar a clemência do doce Jesus, cravado no madeiro do Calvário,
símbolo maior da misericórdia e da confraternidade humana! Era a moral
da época. Fazia-se o mesmo, fizera-se pior, fizera-se primeiro na França e na
Espanha». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT