sexta-feira, 29 de março de 2013

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «A peste era uma antiga conhecida de Lisboa. Tivera-a, juntamente com os soldados de Castela, em volta das suas muralhas, nos últimos anos do século XIV, e chegara-lhe o ânimo para suportar o flagelo e repelir o invasor»

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O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«Era em Abril de 1494. O dia amanhecera formosíssimo. Cruzavam-se nos ares bandos de pássaros, chilreando a sua jubilosa alvorada, por cima da cidade inundada de luz e cingida de flores, no seu recosto de colinas. Lisboa despertava ridente por detrás da sua enegrecida muralha medieval. O sol punha-lhe de alto um diadema de oiro e acendia vivíssimas centelhas multicores nos coruchéus de azulejo e nos vidros corados dos paços da Alcáçova, o remoto alcáçar dos valis muçulmanos, sobre o morro soberbo do Castelo. Faiscavam os vitrais e os coruchéus da Sé, a velha mesquita grande da Lissibona moira, e a sua negra torre quadrangular avulta arrogante e forte, como a torre de menagem da Kasba (o terramoto de 1755 destruiu quase completamente a velha Lisboa, e a restauração Pombalina apagou-lhe o cunho antigo. A Sé reedificada em pouco se parece com a antiga).
Recorta-se no azul puríssimo do céu a cruz de ferro dos grandes templos. O Carmo, quase isolado, ergue altivo o seu vulto gótico, alvo como se fora o manto de um templário. Por entre a casaria branca, de telhados moiriscos, muito vermelhos, debruçam-se dos quintais as roseiras em flor e os laranjais de pomos de oiro, como num trecho de paisagem aldeã. Deixando cair os seus fulgores sobre a face musgosa dos cubelos e quadrelas da muralha secular, como um autocrata omnipotente podia deixar cair a fímbria do manto esplendoroso, o sol subia no horizonte, e, atirando a sua esmola de luz às húmidas ruas da Alfama, estreitas como os corredores de uma bastilha, ia sacudir a juba triunfal sobre as águas do Tejo, a reflectirem o céu, tranquilas como as águas de um lago.
E, todavia, a peste, uma trágica forasteira antiga, opunha a esta paisagem deslumbradora o contraste brutal dos lares cobertos de luto e dos corações espedaçados de dor. Mas nas grandes cidades não há infortúnios individuais que interrompam a luta pela vida, nem angústias de alguém que se imponham aos impulsos da multidão. Dura pouco a mágoa pública e, volvido o primeiro momento de surpresa e de pavor, as cidades retomam a sua fisionomia normal; a morte é como um hóspede com que todos contam e a ninguém causa estranheza, e a eterna comédia de júbilos e dores de santas e de ridículas paixões, de supremas felicidades e de supremos infortúnios, comédia dantesca de triunfadores e de vencidos, prossegue na sua interminável exibição.
A peste era uma antiga conhecida de Lisboa. Tivera-a, juntamente com os soldados de Castela, em volta das suas muralhas, nos últimos anos do século XIV, e chegara-lhe o ânimo para suportar o flagelo e repelir o invasor. Lisboa resignara-se e como que estava agora conformada com o seu pavoroso hóspede. Às vezes, por desafogo, e qualquer recrudescência mais violenta do flagelo, vociferava enraivecidamente contra os judeus, na sua qualidade de agentes maléficos da epidemia; perseguia-os, dava-lhes morte cruel como a lobos vorazes, e depois, ainda a espumejar ódios e a escorrer sangue, ia cair de joelhos nos degraus dos altares, a implorar a clemência do doce Jesus, cravado no madeiro do Calvário, símbolo maior da misericórdia e da confraternidade humana! Era a moral da época. Fazia-se o mesmo, fizera-se pior, fizera-se primeiro na França e na Espanha». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.


Cortesia de L. R. Torres/JDACT