domingo, 24 de março de 2013

Evocação Histórica. Cardeal-rei Henrique, o Homem e o Monarca. Mário Domingues. «Durante o dia 12 de Agosto, celebraram os governadores diversas reuniões, de manhã e de tarde, muito em segredo. Por fim enviaram (…) ao mosteiro de Alcobaça, do qual era abade perpétuo e onde pousava o cardeal Henrique»

jdact

Repercussão de Alcácer Quibir
As Primeiras Notícias de Alcácer Quibir
«Nunca um novo reinado se iniciara, numa atmosfera tão dramática como o do cardeal Henrique, irmão de João III e tio-avô do rei Sebastião. A população de Lisboa, aliás como a de todo o reino vivia em ansiosa expectativa os primeiros dias de Agosto de 1578. Dir-se-ia pressentir que alguma coisa de funesto ocorrera no Norte de África, para onde  um monarca insensato e caprichoso arrastara, numa aventura temerária, um exército de mais de uma dezena de milhares de homens, entre os quais se contava a fina flor da mocidade fidalga da nação. As últimas notícias que se tinham recebido na corte, datavam de 27 de Julho e eram optimistas. Escrevera o próprio monarca Sebastião, com a jactância que o levou à desgraça, que o Maluco estava perto e que, se não se lhe escapasse, não tardaria em dar-lhe batalha.
Ainda parecia temer que o xerife lhe fugisse. Sabia-se, pois, em Portugal que o jovem monarca não desistia e se bater com o famoso guerreiro Abde Almélique, a quem os portugueses desse tempo chamavam simplesmente o Maluco. E pressentia-se que o embate poderia ser fatal para as armas nacionais. Depois, fez-se um prolongado silêncio sobre o destino dos expedicionários. A trágica derrota ocorrera em 4 de Agosto e sete dias mais tarde ainda nada se sabia em Lisboa. Só decorrida uma semana, em 11 ou 12, mas provavelmente em 12, entrou a mata-cavalos na capital, vindo de Gibraltar um mensageiro com as primeiras notícias do desastre militar, ainda muito confusas e incompletas.
A triste novidade do tremendo desbarato do exército português tinha chegado a Ceuta vinte horas depois de se ter consumado em Alcácer Quibir. Leonis Pereira, capitão da praça, sem esperar por mais pormenores, tratou logo de a comunicar aos governadores do reino por meio de uma carta, que remeteu através do Estreito para Gibraltar a António Manso, feitor de Portugal nesta localidade, que por seu turno escreveu a Pedro de Alcáçova Carneiro, enviando-lhe as duas cartas, a dele e a do capitão de Ceuta. Foram estas as primeiras notícias que chegaram a Lisboa: o exército totalmente esmagado, milhares de mortos, feridos e prisioneiros; não se conhecia o paradeiro do rei Sebastião.
Apesar de os governadores terem feito todo o possível por dissimular a presença do mensageiro, escondendo-o e impedindo-o de comunicar com mais alguém, não era Lisboa, por essa época, de tão intenso trânsito que a passagem de um postilhão estrangeiro a toda a brida não despertasse atenções. Logo se soube que tinham chegado novas de África, e o silêncio que se fez sobre a vinda do alvissareiro, adensando o mistério, ainda mais agravou as sombrias preocupações de toda a gente sobre a sorte dos que tinham partido para aquela mal agoirada aventura. Fervilhavam boatos, e o povo, mostrando-se muito agitado, reclamava a divulgação de notícias, boas ou más. Aqui e além, em vários pontos da cidade, produziram-se pequenos tumultos e bradaram-se protestos contra os instigadores e cúmplices da jornada de África, que o mais comezinho bom-senso sempre condenara.
Durante o dia 12 de Agosto, celebraram os governadores diversas reuniões, de manhã e de tarde, muito em segredo, e resolveram por fim enviar secretamente, no dia 13, o provincial da Companhia de Jesus, Jorge Serrão, ao mosteiro de Alcobaça, do qual era abade perpétuo e onde pousava o cardeal Henrique. Levava-lhe as cartas recebidas e o pedido de regressar o mais depressa possível a Lisboa, a fim de acalmar a grande exaltação que se verificava entre o povo. Apesar dos seus sessenta e seis anos e meio muito achacados, o cardeal Henrique empreendeu imediatamente e a toda a pressa a sua viagem de regresso a Lisboa, de onde saíra melindrado pelas atitudes insolentes daquele sobrinho de quem agora não conhecia o destino, mas que pressentia fatal. Vinha, no dizer do cronista, aquietar o povo, que bramava com mágoa do dano geral…, e o consolar com a presença de sua pessoa, quando de todo lhe fosse descoberta uma nova de tanto sentimento, isto é, quando oficialmente lhe fosse comunicada a notícia da grande derrota.
No dia 16, um sábado, ao cair da tarde, hospedava-se o cardeal-infante Henrique no mosteiro de São Bento de Xabregas, ali recebendo ,em seguida os cumprimentos dos governadores. Na manhã imediata, domingo, 17, os fidalgos mais idosos, que não puderam seguir na expedição, e que tinham enviado à África filhos e outros chegados parentes mais jovens, foram convocados pelo cardeal, que lhes comunicou as angustiosas notícias que se sabiam. Ainda eram confusas, mas adivinhava-se que se tornariam sempre mais dramáticas, consoante se fossem esclarecendo.
Só então a certeza da terrível catástrofe se divulgou fulminantemente por toda a cidade. É indescritível o abalo moral sofrido pela população. Milhares de lisboetas percorreram alucinadamente as ruas, em prantos, protestos e imprecações». In Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique, o Homem e o Monarca, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964.

Cortesia de L. R. Torres/JDACT