domingo, 17 de março de 2013

A Filha do Polaco. Campos Júnior. «Era uma criada de Maria Pulaski, a filha de um joalheiro polaco, havia coisa de dois anos estabelecido em Lisboa. Castro oprimiu-se de receio. Aquela negra era mais do que uma simples criada, porque era a confidente de “Maria”…»

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Inexcedido amor
Um Segredo da Polícia
«Defronte da Fundição de Baixo passava a trote um oficial do exército, ainda muito moço. Em frente do Arsenal sofreara um pouco o seu fogoso alter, todo axairelado de espuma e de lama, e correspondera à continência de uma sentinela, garbosamente aprumado no selim. Depois meteu a trote largo pelo caminho de Xabregas. Parou diante do portão brasonado de um velho palácio solarengo, de largas varandas corridas, telhados acumiados, miranetes altos a cada extremo da fachada. Era aquele o palacete de D. Matilde de Castro Albuquerque, senhora de preclara linhagem, antiga dama de D. Maria I, a rainha louca. Viúva de um tenente-general, havia poucos anos, D. Matilde ficara administrando a casa opulenta que o marido lhe deixara, grande, principalmente, em bens vinculados nos arredores de Lisboa, nos campos de Santarém e nas terras de Anadia e Mortágua.
O cavaleiro que parou defronte do portão é o terceiro filho de D. Matilde, o mais novo. Chama se Luís de Castro  Albuquerque e é tenente do Regimento de Infantaria nº 1, aquartelado em Belém, o antigo regimento de Lippe. Parecia que o moço oficial era esperado, pois que, mal sopeou o cavalo, logo a porta se abriu e um criado de cavalariça correu a segurar-lho. Entrou. Dobrou-se diante dele um guarda-portão, velho de rija musculatura e aspecto marcial. Fora guardião da armada. Encanecera e cansara-se nos mares. Tinha sido um valente das nossas esquadras de cruzeiro no Estreito e na costa de Argel; andara com o almirante marquês de Nisa nas campanhas do Mediterrâneo e acompanhara sempre um velho oficial de marinha que vive naquele palacete e é irmão de D. Matilde.
 - Adeus, Tomás - disse-lhe afectuosamente o moço oficial - Sabes se a minha mãe perguntou por mim? - Saberá V. S.ª que perguntou. - Meu irmão já veio? - Chegou muito cedo. Esperam por V. S.ª para jantar. - Pois quê! Ainda não jantaram? Ora, que disparate! E encaminhou-se pata a grande escadaria de balaústres de mármore. Como se de súbito se houvesse lembrado de alguma coisa, o guarda-portão foi atrás dele, muito afogueado. - Meu senhor, meu senhor! - Que é? - perguntou já a meio do primeiro lanço da escada. - Queira V. S.ª perdoar. De todo me ia esquecendo dizer-lhe que está ali no pátio grande, à sua espera, uma preta que traz uma carta. - Para mim? - Para V. S.ª, e não quis que eu a recebesse. Teimou que só a V. S.ª a havia de entregar. - Disse donde vinha? - Não, senhor; não o quis dizer. - Vai lá chamá-la - mandou, um pouco perturbado - Será de Maria? - perguntou de si para si, descendo. Tolice minha. Não mandaria cá, não me escreveria senão por algum motivo de excepcional gravidade.
O Tomás voltou com uma negra, já idosa. Luís de Castro conheceu-a 1ogo. Era uma criada de Maria Pulaski, a filha de um joalheiro polaco, havia coisa de dois anos estabelecido em Lisboa. Castro oprimiu-se de receio. Aquela negra era mais do que uma simples criada, porque era a confidente de Maria e de Ana Beauchamp, a dama de companhia da linda filha do polaco. -Há coisa grave! - pensou, indo para a negra. A mulher segredou-lhe umas palavras que o guarda-portão não podia ouvir, e entregou-lhe uma carta. Muito comovido, Luís de Castro aperrou na mão, febrilmente, aquele pedaço de papel e despediu a negra, dando-lhe recatadamente uma moeda de prata.
A serva foi para o portão, embiocou-se muito no capuz redondo do seu capote encarnado, que só usava por disfarce, espreitou para fora como se receasse algum encontro indiscreto, e meteu rapidamente pelo caminho de Lisboa. Encostado ao balaústre de mármore, Luís de Castro abriu a carta com nervosa impaciência. Leu-a num relance de olhos e fez-se pálido. Dobrou-a apreensivo, guardou-a no peito da farda e subiu a escada lentamente. - Suspeitas! Ameaças! - Ia dizendo consigo – Um plano de fuga... Não! A isso me hei-de eu opor. Atravesso-me eu no caminho deles. Não deixarei que ma levem, ainda que tenha de fazer uma loucura. Seja o que for! Em cima encontrou uma criada. - Minha mãe? - Espera por V. S.ª na sala de jantar. - Vá dizer-lhe que vou já». In António Campos Júnior, A Filha do Polaco, romance histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1960.

Cortesia de Romano Torres/JDACT