«João Carlos, dezoito anos, nascido em Montemínimo,
conserva a impressão de que desapontou, nascendo, os pais que preferiam outra
filha depois do primeiro par. Dessa desilusão original deve ter vindo uma
visível relutância em suportar os tempos iniciais: não só enfezado, mas de
estômago débil, recusou-se durante três anos a comer, sendo necessário, segundo
testemunho dos seus progenitores, apertar-lhe o nariz para que abrisse a boca,
lhe enfiassem papas goela abaixo, as quais papas, depois das canseiras da mãe e
da criada que passavam horas impingindo-lhe almoço e jantar, terminava vomitando.
Elas recomeçavam com a esperança de que, ao fim e ao cabo, no estômago qualquer
ração ficasse. Ficou, ao menos o bastante para safar-se.
Quando entendeu que nada havia a fazer senão viver,
que à manja e à canja estava condenado, resolveu, por volta dos três anos,
vingar-se, devorar tudo, incluindo os chocolates duma caixa escondida no
armário da casa de jantar. A bacanal provocou-lhe disenteria tal, que passou em
médicos anos a seguir, sem resultado. Até ao fim da adolescência era visto
correndo de repente rumo à retrete, interrompendo nos piores momentos os
trabalhos mais sérios. Isso o levou a ficar mais em casa, assim começou
escrevendo para ocupar o tempo.
De temperamento bastante introvertido mas não o suficiente
para que o facto fosse transparente à pouco ilustrada gente do lugar, seus
conflitos com a comunidade eram tão claros quanto inexplicáveis. Porque não
saberia jogar à bola, ao berlinde, ao bilhar? Porque havia de ser desportiva
nulidade? Aos quinze pariu peça de inútil prosa, não destinada a redacções,
pontos, exercícios escolares, curtas cartas à imensa família que incluía primos
em vários graus, tios consanguíneos e por afinidade, só não avós porque os não
tinha já, e aos amigos raros. A prosa, escrita na praia, perante os pires poentes
sobre o mar, era má mas parece ter-lhe dado o inédito prazer de escrevinhar,
ludicamente, para si, entregue a essa finalidade
sem fim, inexplicável, que hoje mesmo só pode compreender dificilmente.
Naquele verão voltou várias vezes ao vício descoberto.
Porém com o regresso às aulas a pseudopoética decididamente
o abandonava, horrorizada perante a vacuidade dos livros escolares. Nos estudos
era considerado bom aluno, designação que desprezava envergonhado, pelas
ressonâncias beatas que evocava.
Piedade, vinte e quatro, Peggotty segundo Arminda para Jó e Tiago, cozinheira
solteira dormindo no quarto comum com Estela, sótão forno de verão, figorifo, diz Estela, no inverno,
Piedade acorda sempre mal contente e, sobre o dormir, em não passando hora ou
mais, não bebe coisa que se veja. Este poder sofrer até às sete que não beba é muito
bom, acha Piedade, sem esquecer que o estômago não deve trazer frouxo ou
desabotoado, à solta, largo, esbarrigado, antes apertado como os peitos que nem
tem tempo de mirar no caco ou caca de espelho da casa de banho delas, cubículo
sem chuveiro, a água aquecida na cozinha para o banho, acarretada em jarros,
deitada no alguidar de lata, no bidé de pés metálicos, no lavatório desses
antigos que despejam para um balde. Todo este ritual ela tem de executar cada
manhã e é um frete, tudo isto lhe acentua a diferença em relação às casas de banho
dos amos, acha que bem não lhe vai enquanto lhe for como lhe vai, mal e desonrada, assim aqui se diz,
pelo menino André, da idade dela, menino por ser rico, remediado, segundo lhe ensinaram aqui em casa». In Almeida
Faria, Cortes, Editorial Caminho, o Campo da Palavra, Lisboa, 1986.
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