Os Moçárabes
«Antes de apreciarmos a influência da civilização
árabe sobre a Espanha, é necessário darmos em breves palavras una ideia da
espécie de cultura desse povo que entre o século IX e o XII, isto é, no período
correspondente ao esplendor do seu domínio na Península, foi transitoriamente o
depositário da cultura helénica. O movimento intelectual dos árabes até o fim
do século XII considerado de um modo absoluto e independentemente de quaisquer
considerações, é superior ao das nações cristãs que das mãos desses inimigos receberam
a tradição das ciências gregas. Até à queda da dinastia Omíada do trono
dos califas (750), a cultura dos
árabes não saíra da esfera que parece ser a natural e própria dos povos
orientais: a interpretação do Corão, isto é, o estudo das tradições religiosas, e a eloquência e poética
da língua nativa. As faculdades propriamente científicas não tinham acordado; e
a história ulterior mostrou não terem elas primazia no espírito dessas raças. A
elevação da dinastia dos Abácidas (750-1258)
e a rivalidade dos califas da Espanha e da África fizeram propagar, desde
Samarcanda e Bocara até Fez e Córdova, um furor de educação. Os califas de
Bagdad tinham agentes em Constantinopla, na Arménia, na Síria, no Egipto, encarregados
de comprar livros gregos que eram logo traduzidos em árabe. Al-Mamua, (813-33) presidia em pessoa às
assembleias dos sábios, e as livrarias dos doutores davam para carregar muitos
camelos. A dos Fatimitas no Cairo contava, ao que dizem, cem mil volumes;
e os Omíadas de Espanha assegura-se terem reunido mais de meio milhão. Excedia
setenta o número das bibliotecas de Córdova, de Málaga, de Almeria e de Múrcia.
Os árabes eram então os mestres, os médicos e os
adivinhos dos príncipes cristãos bárbaros, da mesma forma que os judeus eram
seus banqueiros e fazendistas. Os nomes de Mesua e Geber, de Maiomónides,
Rasis, Avicena, Averroes, ficaram ligados aos primórdios da
anatomia, da botânica, e da química da Idade Média. Afonso,
o Sábio, aprendeu com um árabe a alquimia:
La piedra que llman filosofal
Sabia facer y me la ensenó.
Dizem os eruditos que nessas
grandes bibliotecas onde se achavam as obras de Platão e de Euclides, de
Apolónio, de Ptolomeu, de Hipócrates, de Galeno, sobretudo de Aristóteles, o
mais lido e gabado entre todos, ainda a literatura, a retórica e os comentários
do Corão ocupavam a máxima parte das estantes. O cultismo dessas raças mais
artistas do que pensadoras, mais curiosas do que investigadoras, literatas e
requintadas, para quem a imaginação é quase tudo e o exercício da razão apenas
elementar, dá-lhes o que quer que é de uma fisionomia feminina ou infantil que
a leva a preferir a tudo as belas formas, o
estilo elegante, ou a subtileza, o conceito e todas as extravagâncias e
desvarios da imaginação, com que suprem a falta de actividade
propriamente racional ou científica». In Oliveira Martins, História da Civilização
Ibérica, Guimarães Editores, Lisboa, 1994.
continua
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT