sexta-feira, 15 de março de 2013

Idade Média. O Crepúsculo em Portugal. António José Saraiva. «O amor trovadoresco e cavaleiresco é, por ideal, secreto, clandestino e impossível. Os seus modelos são os amores de Tristão e Isolda, ou de Lançarote e a rainha Genebra»

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«Há algumas alusões nos cancioneiros a acontecimentos políticos e militares ocorridos em Portugal, como a guerra civil entre Afonso e Sancho; mas são escassas em comparação com as que se referem a acontecimentos em Castela: jornada de Sevilha, tomada de Valência, morte de Fernando III e de sua viúva e outros. Tudo isto se resume em que a chamada primitiva lírica portuguesa é, na realidade uma lírica peninsular que teve em Leão-Castela o seu principal foco de expansão e na Galiza, e nesta expressão incluímos o Portugal além-Douro, a sua raiz.

A arte de amar dos trovadores
A poesia de corte compilada na Cancioneiro da Ajuda e nos que se lhe seguem é, naturalmente, muito diversa da dos cantares rústicos, que correspondem aos gostos e interesses da gente rural, conquanto fossem também cantados nas vilas e cidades. Ao passo que a poesia rústica e burguesa tem a sua expressão mais fiel e característica nos cantares de amigo, de estrutura primitiva e rígida, a poesia palaciana prefere, em geral, um género de importação provençal, onde as combinações rítmicas e estróficas são muito mais livres, variáveis e moldáveis à invenção do poeta: o cantar de amor, derivado da cansó provençal. Não quer isto dizer que o cantar de amor seja exclusivo da poesia de corte: há cantares de amor escritos por habitantes das cidades, como os de João Airas, burguês de Santiago, ou os de Vidal, judeu de Elvas; assim como há cantares de amigo palacianos de invenção, se não de inspiração e conteúdo.
O rei Dinis é autor de grande número deles; e, se em muitos parece procurar manter-se fiel à tradição folclórica, noutros injectou um conteúdo cortesão. Ao contrário da cantiga de amigo, o cantar de amor não sugere ambientes, sejam físicos, determinados por referências ao mundo exterior, ou sociais, resultantes da presença de personagens interessados no enredo amoroso; não se refere à mãe, ao santo da romaria, às ondas do mar ou às árvores em flor. Isto resulta de, ao contrário da poesia popular, esta não ser dramática. Só duas ou três vezes respigamos alusões ao mundo ambiente:
  • um poeta admirou uma dama por entre as ameias de um castelo;
  • outro perdeu-se por uma mulher que viu em cabelo entoando um cantar. Estar em cabelo, nesta época, era uma antecipação de estar nua.
Não há espaço à volta nos cantares de amor, se exceptuarmos as pastorelas, que  imitam de perto as provençais, mas só a voz que canta na solidão: uma súplica do apaixonado para que a senhor reconheça e premeie o seu serviço; ou um elogio abstracto da beleza dela; ou uma descrição dos tormentos do poeta dirigida à piedade ou mesura da senhor.
O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como um serviço. O cavaleiro servia a dama pelo tempo que fosse necessário para merecer o seu galardão. Consistia esse serviço em dedicar-lhe os pensamentos, os versos e os actos; em estar presente em certas ocasiões; em não se ausentar sem licença, etc. O servidor está para com a senhor como o vassalo feudal para com o suserano:

E que queria eu melhor
de seer seu vassalo
e ela mha senhor?

Já falámos do poeta, regressado de França, que emprega, para definir este serviço, a terminologia feudal francesa: je suis votre homme-lige. A regra principal deste serviço era, além da fidelidade, o segredo. O cavaleiro devia fazer os possíveis para que ninguém sequer suspeitasse do nome da sua senhora, indo até ao sacrifício de se privar do seu convívio, ou de se fingir apaixonado por outra. O disfarce, que consistia em dedicar versos a uma dama para ocultar a verdadeira amada, era frequente. Na grande maioria das cantigas de amor, os requerimentos assíduos do servidor visam a conseguir da senhor uma coisa que se designa pela expressão fazer bem. É fácil compreender o que significa este eufemismo: um poeta, referindo-se a uma soldadeira venal, conta que ela não lhe quer fazer bem sem que primeiro o pretendente lhe pague um maravedi. O rei Dinis, tendo conseguido da senhor dos seus cantares de amor que ela fizesse todo o bem sem faltar nada, pede-lhe, no fim, segredo mútuo, porque, diz, se este preito for sabido, nem ele nem ela tirarão daí estima nem louvor. De resto, o sofisticado nome de senhor é aplicado a concubinas, a mulheres de vida livre e até a meretrizes.
Os livros de linhagens relatam diversas aventuras amorosas de homens e de mulheres da nobreza; e essas histórias tiveram a sua expressão poética. É conhecido o caso de D. Maria Pais Ribeira, inspiradora de versos e mãe de filhos de Sancho I, que teve na corte e na sociedade portuguesa uma alta posição. No próprio texto dos cancioneiros encontramos as pegadas de um rei apreciador das filhas dos seus súbditos: uma rapariga que pergunta à mãe o que há-de fazer porque o rei a requereu de amores:

 - Cabelos, los meus cabelos,
El-rei me enviou por elos.
Madre que lhis farei?
 - Filha dade-os a el-rei.

Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a que chama senhor, tornando-a um objecto quase inacessível; a atitude é a de uma espécie de ascese abstinente, seja qual for a realidade a que as palavras servem de cortina. A regra do segredo não é só, porventura, uma precaução exigida por amores clandestinos, numa sociedade em que o adultério era punido por lei constantemente transgredida, mas uma regra ascética que tornava o amor mais intenso quanto mais solitário e à margem da sociedade. O amor trovadoresco e cavaleiresco é, por ideal, secreto, clandestino e impossível. Os seus modelos são os amores de Tristão e Isolda, ou de Lançarote e a rainha Genebra. Nisto, os cantares de amor distinguem-se como o preto e o branco dos cantares de amigo. A clandestinidade nos amores e o adultério são tema obrigatório da literatura amorosa medieval e supõem-se nos grandes casais de amantes que nos legou o ciclo arturiano. A condessa Maria de Champagne sentenciou solenemente que o amor entre casados é impossível». In António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva Publicações, Lisboa, 1998, ISBN 972-662-157-7.

Cortesia de Gradiva/JDACT