I Fragmento
«Subitamente o telefone tocou. Ela não atende receia atendê-lo não quer
interromper. O telefone tocou segunda vez. Tocou terceira vez. Tocou ainda mais
agudo e intruso um pouco mais antes que Regina se levantasse e pegasse no auscultador
sem desligar a gravação de onde começavam a sair as palavras seiscentistas de
John Donne num soneto sagrado: sim és
tu Pedro? Morte não sejas orgulhosa ainda que te tenham chamado poderosa e
terrível pois não és nada disso morreu hoje a mãe da Graça pois
aqueles que julgas que derrubas não morrem pobre morte nem mesmo a mim tu
poderás matar foi de repente não sabemos do coração decerto assim tão
rápido do repouso e do sono que são tuas imagens mais prazer que de ti muito
mais deve fluir e os nossos melhores homens ao deitar-se contigo dão-te seus
ossos só pois as almas te escapam deve estar lá agora ela não sabia de
nada claro o Daniel João ficou desesperado escrava de fado sorte reis e homens
desvairados convives com veneno prisão e hospital e a papoila ou feitiços nos
põem igualmente a dormir passado um leve sono eternamente despertamos e a morte
não será mais morte tu morrerás. Entretanto Regina desligara e ambos
parecem meditar. Pensas em Graça que imaginas debruçada sobre a morte da mãe e
não a procuras porque tens para ti que se tão escasso é o prazo ao corpo
concedido para começar a corromper-se têm direito os que o amaram de estar a
sós com ele. Mas isso ela não julgou quando partiu procurando-te primeiro naquele
quarto depois no café em frente onde costumam encontrar-se e lhe disseram que
saíste com uma rapariga. Enfim Graça foi para tua casa e acabou por se deitar
sobre a tua dura cama quando lágrimas cresceram nos seus calmos olhos claros e
as pálpebras começaram a pesar-lhe. Da porta a campainha toca. Pedro entra. É Regina
quem ralha: ó pá vens encharcado despe esse casaco e descalça os sapatos olha
prás calças alagadas do joelho pra baixo. Entram na sala. Tu levantas-te. Vais apertar-lhe a
mão: olá Pedro: eh pá que molha: há aqui conhaque vê se aqueces: prefiro um Cubalibre viva Cuba livre. Ela
maternalmente: eu arranjo a bebida senta-te tens aqui sanduíches: obrigado
Regina não jantei estou com uma traça incrível. Nervosamente Pedro tira o
casaco põe-no sobre o aquecedor ligado do qual aproxima os fumegantes sapatos.
Regina muito solícita: Pedro queres que coloque uma cassete de música
electrónica: yes of course. Mecânico
encaixe de bobinas botões e intenso alto ruído. Dois estudos electrónicos de
Stockhausen. A memória te chega dos números das origens da música da matemática
do ritmo. Dozevírgulasete trêsvírgulanove dozevírguladois vintevírgulasete
setevírgulazero trêsvírgulatrês dozevírgulatrês umvírgulazero seisvírgulazero
doisvírgulazero onzevírgulaquatro doisvírgulaoito dozevírgulanove dezoitovírgulaquatro
setevírgulazero vinteetrêsvírgulaoito setevírgulazero dezvírgulaum
dezvírgulasete catorzevírguladois. Frequências harmónicas puros sons
sinusoidais como gráficas representações da função seno rumores brancos
absolutos filtrados gelados reduzidos impulsos estalidos. Mundo interplanetário
espacial do rumor branco que em si todos os rumores abrange os mundos todos. Voz
do criador pelo homem assumida vária e vagamente ou monocórdica até que ao fim
de todas as tormentas ao seio recolha à fonte humedecida donde agora a sua
imagem só que ainda não ela volta. Voz desintegrada e aflita sombra apenas de
arquétipo perfeito. Diz Pedro: tu Regina sentes o teu corpo quer dizer para além
de dor ou mal-estar se estás doente mas eu sinto-me a mim mesmo alucinadamente
foi só por isso que vim hoje ia no autocarro para a Baixa chovia sedeusadava
havia nevoeiro casas ruas gente tudo era cinzento e pensei que a terra estava
liquidada e os homens se arrastam alienados do real que os ignora e se vingam
ignorando e vi que era vil a vida assim que era vil a minha vida e foi nesse
exacto instante que o meu corpo se me tornou presente». In Almeida Faria, Rumor Branco,
Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT