Teófilo contesta Herculano
«Achou a porta do abstruso sintético e simbólico engrinaldada de
maravalhas francesas: meteu-se por ela; e, em resultado, aí temos, não direi a Visão,
as Tempestades
e a Ondina, porque não quero que V.
S.ª fique mal comigo, mas direi a História da Poesia Popular e os Forais
que V. S.ª trata desapiedadamente. E depois destas linhas tão certeiras,
pergunta Herculano porque não dá ao
mesmo Teófilo certo conselho que
acabava de endereçar ao jovem Oliveira
Martins:
- Dir-me-á porque não o dou a Teófilo Braga? Porque não o aceita. Aquele, ou já se não cura, ou há-de curar-se a si mesmo. É o que, sem lho dizer, eu do coração desejo.
Esta carta do ilustre aldeão data de 1869 e foi, aliás, reproduzida pelo próprio Teófilo no seu livro de correspondência e autobiografia mental. Quarenta Anos de Vida Literária, 1860-1900
(Lisboa, 1903), em nota às missivas
trocadas com Oliveira Martins. Numa
carta a Teófilo, de Janeiro de 1870, Oliveira Martins ocupa-se precisamente da frase de Herculano e tenta explicá-la ao amigo,
uma vez que a referida epístola de Vale de Lobos já tinha sido dada à
estampa pelo destinatário. Magoou-o,
diz-me, escreve o autor de Phoebus Moniz,
- a frase de Herculano que eu trouxe para a imprensa. A sua boa amizade quer relevar-me de uma responsabilidade que é minha e como tal quero toda. A frase é do Herculano, eu perfilhando-a tornei-a minha. É bom sempre que a amizade não nos faça indulgentes. (carta de 25 de Janeiro de 1870).
Mais adiante, depois de ter procurado atenuar o que podia haver de
desagradável para Teófilo na missiva
herculaniana, Oliveira Martins
conclui:
- Parece-me também um tanto errado o juízo que faz do Herculano. Creio que há um erro geral no carácter legendário que lhe tem sido feito. Herculano não é injusto. Rude de natural, tem feito um estudo para se embrutecer cada dia mais. É verdade que ele se dá por vezes seus ares, mas no fundo é um espírito são, cândido até. Eu, pelo menos, creio-o assim e respeito-o.
Vemos já desenhar-se a divergência profunda que irá separar a argúcia
crítica e humana de um Oliveira Martins,
admirador exigente de Herculano, e a
ojeriza ressentida, vesga, sectária e perfeitamente desprovida de fundamentos
críticos de um Teófilo. Não será sequer
inexacto ou exagerado acrescentar que o primeiro, o autor do Portugal
Contemporâneo, soube ver e saudar a verdadeira estatura titânica e
fundamente prestante do solitário de Vale de Lobos, enquanto o poeta
frustíssimo da Visão dos Tempos, toldado pelo despeito e por irracional
animadversão que lhe desfocou todo o sentido crítico e a noção mais elementar
dos valores e das proporções, se entregou com inflexível rancor às delícias de
abocanhar a memória e a figura de Herculano,
pelo menos desde 1873, o ano em que
publica na Bibliografia Crítica de História e de Literatura, de Adolfo Coelho, uma catilinária que
seria, aliás, retomada quase que ipsis
verbis cerca de duas décadas depois, no volume de As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa,
em 1892. Uma pequena amostra dessa
óptica de rancor acusatório transparece já, por exemplo, nesta passagem da sua
pequena História das Ideias Republicanas em Portugal, de 1880:
- O despeito político de Herculano, que precedeu a sua abstenção da actividade literária, foi um terrível exemplo para a geração nova, que entendeu que a literatura era incompatível com a participação dos interesses sociais do momento.
Razão tinha o antigo soldado raso que desembarcara entre os 7500 do Mindelo, para implantar
em Portugal a Liberdade: Teófilo ou
se curaria a si mesmo ou então ficaria para sempre enquistado nos seus
preconceitos, fobias, tinetas e tiques mentais». In João Medina, Herculano e a
Geração de 70, Edições Terra Livre, Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.
continua
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