quinta-feira, 28 de março de 2013

Destroços. O gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «Não está, de resto, ao alcance de ninguém o poder furtar-se a uma forma de projecção que é final a que justamente constitui ‘o passado’ ao mesmo tempo como ‘passado’ e ‘passado nosso’»

jdact

«Não há uma só linha neste texto que não seja discutível. Estou quase certo que o António José Saraiva de 1965 teria engulhos em o subscrever. A facilidade moderna que a todos nos é concedida de imputar a autores antigos ideias, atitudes, opções que o futuro desmonetizou e passam a nossos olhos como etiquetas relativizadas pela História, esconde-nos esta coisa simples e óbvia: é que tais atitudes, se tivessem existido, eram para os seus autores caso de vida e de morte. Eram até mais do que isso e pouco importa que autores modernos já não conheçam nem o preço nem o sabor, nem a gravidade do que está em causa. Se Gil Vicente tivesse sido, no meio de uma corte piedosa a quem jamais alguém se lembrou de contestar a ortodoxia, esse incrível adepto de não sei que Deus sem transcendência nem personalidade (posto, ainda por cima, na conta do beato Raimundo Lúlio...) não era apenas a sua situação civil privilegiada, nem a sua fantasiosa cabeça que corriam riscos que o autor de um ensaio sobre a Inquisição (maldita) facilmente adivinhará, mas igualmente a totalidade do seu destino, ou para usar a linguagem de Mestre Gil, a sua salvação. Na perspectiva de António José Saraiva não caberia, a menos de julgar a sociedade do seu tempo imbecil e estúpida, outra solução que a de supor Gil Vicente ou refinado hipócrita ou bobo inofensivo e inconsciente. Mas nem A. J. Saraiva aceitaria esta conclusão, que todavia é a única adequada às suas premissas.
De onde procede uma tão arriscada formulação das intenções espirituais (deixo de lado as ideológicas que também dariam pano para mangas e A. J. Saraiva mete no mesmo saco) de Gil Vicente? António José Saraiva não é um publicista qualquer, é um escolar responsável, capaz, formado ou sabedor das boas regras metodológicas, apostado mesmo na tarefa grandiosa, acaso desmedida, de refazer de alto a baixo uma historiografia literária tradicional. É necessário apreciá-lo na linha da exigência, da claridade, do respeito pela verdade que publicamente norteiam o seu labor, como norteiam o de outros que lhe são ou foram próximos, Óscar Lopes, Mário Sacramento, o mais jovem Costa Dias.
A única resposta que permite salvar afirmações tão abusivas, tão solidamente infundadas, mas pelas quais se não pode ter a indulgência do deslize por serem filhas de um sistema e sistematicamente renovadas a propósito de muitos, para não dizer de todos os autores tratados (João de Barros, Camões, etc.) é a de admitir, por um lado, a sinceridade da convicção que as dita, o que não ponho em dúvida, e por outro, a de que essa convicção é inadequada à compreensão do nosso passado. A tendência a interpretar o passado projectando sobre ele evidências ou descobertas modernas não é, em si, uma fonte de abuso. Não está, de resto, ao alcance de ninguém o poder furtar-se a uma forma de projecção que é final a que justamente constitui o passado ao mesmo tempo como passado e passado nosso. Mas a esta fatalidade convém não acrescentar as que nós fabricamos por inatenção, desrespeito ou falta de prudência metodológicas que sem eliminar o risco de erro, o podem atenuar e com alguma humildade aproximar-nos do plausível». In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.

Cortesia Gradiva/JDACT