quinta-feira, 28 de março de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Também se compreende que o “Velho Portugal”, ansioso por criar esperança e optimismo no coração de seus filhos, afirmasse que o recente desastre do Norte de África apenas o afectara nos ‘cabelos’ e nas ‘unhas’, e que ‘o resto do corpo’ lhe ficara ‘inteiro e são’»

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(Continuação)

A Voz Dramática do “Velho Portugal”
«Assim falava o Velho Portugal aos seus filhos dessa época. Sua voz comovente só em certos momentos parecerá um tanto desarmoniosa aos portugueses de hoje, sobretudo naqueles passos em que louva a bondade de alguns reis, como Sebastião e o próprio cardeal-rei Henrique então reinante, os maiores responsáveis da situação angustiosa a que a nação chegara nesse triste período. Não esqueçamos, porém, que o objectivo do anónimo panfletário era robustecer o patriotismo lusitano, fomentar a união de todas as classes, criar um bloco nacional contra a mais do que provável agressão da Espanha, que já se preparava com todo o afã.
Mesmo os erros de visão, que neste valioso documento se notam, reflectem como um espelho as ideias, as crenças, os costumes, bem como os sentimentos comuns dos Portugueses desse tempo. É irrisório e falso, por exemplo, acusar o rei católico de permitir com a sua suposta tolerância nos países protestantes, Alemanha, Inglaterra e França, cita o anónimo, que nasçam hereges no país vizinho. Esta peta destinava-se a impressionar os católicos lusitanos. Sabe-se que, pelo contrário, Filipe II moveu odiosas perseguições aos chamados hereges em todos os territórios que dominava, tornando assim ainda mais impopular a sua suserania; e sabe-se, modernamente, que foi precisamente na Igreja reformada que a burguesia desses países se firmou para ascender na escala social e interferir, sob a bandeira da liberdade de consciência, mais directamente no governo dos Estados, preparando a sua classe para mais ousadas conquistas; sabe-se ainda que Portugal, imitando Castela, desde o reinado de João III, se lançara, por meio da Inquisição (maldita), numa perseguição feroz à burguesia, com o pretexto de reprimir a her'esia dos cristão-novos; e depreende-se que foi uma burguesia, com sua mentalidade prática, sua vocação para a administração pública e sua habilidade para os negócios, que faltou na hora histórica em que a nação, debilitada pela derrota de Alcácer Quibir, mais precisava de todos os seus recursos e de uma classe medianeira das outras classes, que lhes cimentasse a coesão necessária para resistir ao tremendo embate que fatalmente ia sofrer.
Também se compreende que o Velho Portugal, ansioso por criar esperança e optimismo no coração de seus filhos, afirmasse que o recente desastre do Norte de África apenas o afectara nos cabelos e nas unhas, e que o resto do corpo lhe ficara inteiro e são, que era o que contava. Mas, respirando a atmosfera da sua época, os Portugueses de há quatro séculos não podiam fazer reparo nestes lapsos, nem notavam estes equívocos, que talvez fossem convicção do próprio escritor anónimo; viviam-nos, respiravam-nos, sentiam-nos, tal como hoje vivemos, vibramos e nos alimentamos de outros ideais, equívocos, e mitos, que por certo farão sorrir os vindouros, se eles não forem um pouco mais tolerantes do que nós.

A Situação de Portugal após a Morte do Cardeal-rei
Ao contrário do que as recomendações ou lembranças do Velho Portugal com tanto optimismo asseveravam, eram bem tristes e precárias as condições em que o rei Henrique deixara o país, à data da sua morte em Almeirim: 31 de Janeiro de 1580». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

continua
Cortesia de Romano Torres/JDACT