quinta-feira, 7 de março de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Recordo-vos a todos a rectidão e suavidade da justiça dos meus Reis e a sua moderação e execução, a qual é mais ameaça para filhos que castigo para vassalos»

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(Continuação)

A Voz Dramática do “Velho Portugal”
35.ª - Recordo-vos que não vos fieis, nem vos enganem, contratos nem segurança, se bem que cheios de cautelas, pois, para conseguirem o fim que prometem, mas depois que o obtiveram, não faltam razões que disfarçam sem opressão nem ultraje, porque não há contra quem.
36.ª - Recordo-vos a todos a rectidão e suavidade da justiça dos meus Reis e a sua moderação e execução, a qual é mais ameaça para filhos que castigo para vassalos.
37.ª - Recordo-vos que, se me derdes a Castela, tereis sempre na mente o grande desprazer de ter perdido este nosso governo e Rei próprio natural que sempre vos ouvia e vos encontrareis em todas as vossas necessidades; e, para os remédios dos agravos que vos fizerem, tereis de ir procurar um Rei estrangeiro assim longe e porventura pouco amigo.
38.ª - Recordo-vos aquela opinião com a qual, me tendes espalhado, sendo vós tão poucos para a África, Índia e muitas outras partes, envergonhai-vos agora se apreciais a honra de querer que ocorra agora o que os nossos avós à custa do seu sangue não quiseram sucedesse nos seus tempos.
39.ª - Recordo-vos que, quando os trabalhos chegarem ao extremo, tereis de morrer combatendo por mim que vos criei e para a vossa liberdade que será muito melhor partido, e mais honrado que a vida com sujeição infame, que será sempre insuportável: vendo a mudança da justiça, das leis, pedidos, imposições e outras coisas das quais agora burlais. E não imagineis outra felicidade, porque, se não tiverdes governo próprio e tão bom, tereis querelas e fastídios, próprios do estrangeiro e tão diferente.
40.ª - Recordo-vos de algumas limas surdas que se diz haver entre nós, e quão doces coisas sejam as promessas e os presentes, e quão fácil é a cada um crer o que deseja. E que há negócios aos quais não se deve dar atenção e nunce faltam, também contra Deus e a fé.
41ª - Recordo-vos que, em, consideração da mesma fé, não vos fica bem juntar-vos a Castela, porque permitindo os pecados, como permitiram na Alemanha, Inglaterra e França, que nasçam hereges em Espanha, se toda for de um chefe, se ajuntarão os católicos aos hereges. Que Deus vos dê a graça de vos conservar na fé, pois vemos os trabalhos que as gentes daqueles reinos sofreram e sofrem, e particularmente os da Inglaterra por lhes faltar este remédio.
42.ª - Recordo-vos que, para defender o nossa justiça e a pessoa a quem for declarada a sucessão, é necessário reformar já as nossos fortalezas, tão necessárias que parece que tinham sido dispostas por Deus nos tempos passados para os de agora, especialmente na fronteira. E igualmente fareis que partam para elas logo os governadores e outras pessoas práticas da guerra, e que se ponham em ordem a toda a fúria as galeras, os galeões para os acidentes ordinários e extraordinários. E igualmente convém muito mandar pessoas fiéis à França, Alemanha, Veneza, Inglaterra e outros Príncipes da Itália, dizendo do trabalho em que me encontro e quanto lhes toca ajudar-me. E estas mesmas pessoas podem fazer vir muitas armas e munições daquelas partes, o que há muito deviam estar cá, por meio de certos mercadores, como se fazia anos atrás. E quem disser que, por isto ou outras coisas de semelhante qualidade, falta dinheiro, ou é muito ignorante ou muito desconfiado do Pátria, ou uma e outra coisa ao mesmo tempo, e parece que bebeu nalguma fonte contaminada, pois, pelo que quis o meu Rei-cardeal Henrique, as alfândegas com património da coroa ou são para vender parte dele ou para conservá-lo todo. Não sei que mais vos recordar, senão que sucedendo casos para os quais serão necessários os conselhos que não tomais das nossas afeições, ódios ou interesses nem de pessoas apaixonadas senão de Deus e daquelas pessoas às quais ele ordena que na terra confieis as vossas almas, para que caminhando por esta estrada digas no fim: Prope est Dominus omnibus invocantibus eum in veritate. E ele nos vigie para que não saiamos da sua divina vontade. Amen.

In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

continua
Cortesia de Romano Torres/JDACT