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O suor assomava-lhe à pele enquanto os dedos secos e inseguros eram assaltados
por tremores incontroláveis. Orientava a cabeça ao tecto procurando ver o céu,
e aí repousado o seu filho Bernardo. Mas a vista assustada não passava das
grossas traves de madeira que suportavam o telhado, e tamanha era a culpa que o
cobria, que desejava que esta por si só fosse capaz de fender os apoios nas
extremidades e fazer desabar todo aquele peso sobre o seu próprio corpo... Não
havia noite em que não fosse assaltado por aqueles ataques de pânico que ora
lhe anulavam as forças e a vontade, ora o enlouqueciam com crises frenéticas de
ansiedade, levando-o a percorrer as salas do castelo e até as muralhas,
correndo perigosamente sobre pedras irregulares e traiçoeiras. Durante o dia,
as distracções dos soldados e do povo mantinham-no sereno, por vezes até
conformado; mas com o cair da noite, tal como um nevoeiro cerrado e frio, vinha
a solidão, e com ela o círculo de pensamentos tortuosos dos quais não conseguia
escapar. O Natal, duas semanas antes, fora o mais triste da sua vida, e chegado
o ano novo de mil quinhentos e catorze, era tempo de partir para Portugal e
deixar Arzila pela última vez. Triste forma de despedida, concluiu,
abandonando-se sobre o seu cadeirão, onde tantas vezes reflectira sobre
estratégias e políticas, onde escutara atentamente os conselhos dos seus
homens, inconfidências de mercadores amigos e segredos de viajantes, que a
troco de um punhado de reis estendiam os seus olhos ao que acontecia nas outras
praças, tanto as portuguesas como as mouriscas. Das janelas na parede oposta
vinha o som da rebentação das vagas nas rochas e no paredão da muralha, tão forte
e assustador que parecia capaz de desfazer as pedras a qualquer instante, e
entrar pe1a sala adentro e esmagá-lo entre as paredes ruídas.
Seria
pelo melhor, pensou, pegando de forma mecânica na sua espada, esquecida junto
ao braço do cadeirão. De nada mais lhe servia, e sem força nem vontade para
agarrá-la no punho e erguê-la ao alto, apenas se limitou a deixar a ponta
tombar sobre o soalho, e sacar deste pequenas lascas, picando-o distraidamente
enquanto permanecia absorto na sua letargia. O Inverno estava a ser particularmente
rigoroso naquele ano. Chovera com uma intensidade e persistência das quais não
havia memória, a humidade instalara-se como a praga nas casas, na igreja e no
castelo; e aquelas manchas pretas, agarradas às pedras das paredes do salão
como bivalves nas rochas da praia, cresciam e tomavam a forma de autênticos
fantasmas, espíritos antigos e malignos, dançando ao ritmo da luz quebradiça
das velas de sebo, alongando-se pelo tecto e descendo por detrás do velho
conde, abrindo-se nas suas costas como as asas de uma mariposa, prestes a
fechar-se sobre o corpo cansado e gasto. E o vento lá fora agitava-se e batia
contra as portadas de madeira das janelas, tão empenadas que mal fechavam,
rangendo de forma arrastada e aguda. A cada rajada mais forte estremeciam com
tanta violência que pareciam prestes a desfazer-se em pedaços, e naquela
agitação o par da janela diante do conde escancarou-se por completo, batendo
contra a pedra num grande estrondo que o fez pular com o sobressalto. Fora de
si, ergueu-se de repente, solto da modorra de espírito que lhe arrastava os
pés, e dirigiu-se de espada em punho até à janela por onde agora até pequenas
gotículas de mar salgado entravam, esvoaçantes e agrestes. O coração voltava a
acelerar-lhe no peito e as pupilas dilatavam-se-lhe, enquanto se apoiava no
parapeito, perscrutando a imensidão do mar escuro e medonho. Apenas a espuma
branca da rebentação se via, algures nas rochas, lá em baixo na praia. Tudo o
resto era breu, e voltado contra aquele cenário de tormenta, perdido em mais um
acesso de loucura, o conde Vasco erguia a espada ao céu e às nuvens pretas, de
onde caía agora uma chuva torrencial, sentindo a água escorrer pelas faces, encharcando-lhe
os cabelos e as barbas ao mesmo tempo que praguejava contra os elementos da
natureza.
Mas
já não era a morte do filho Bernardo aquilo que o levava a desejar acometer
contra a tempestade. Temendo o velho dito que uma desgraça nunca vem só, era
agora o medo de uma outra tragédia, aquilo que o levava a querer desfigurar as
nuvens e as vagas poderosas a golpe de espada. Leva-me antes a mim, se é a
morte que te satisfaz!, gritava para o mar, com um vozeirão rouco. Também tu me
queres desgraçar? Pois então aqui estou, leva-me e deixa-os em paz, maldito! De
tal forma está o conde transtornado que se debruça perigosamente no parapeito
da janela, brandindo a espada em círculos. E insiste naquele combate inútil
quando de súbito lhe escorregam os pés no chão onde mal se apoiava e
desequilibra-se, deixando cair a espada pela parede do castelo abaixo, a qual
soltou um som metálico ao bater nas rochas, vinte metros abaixo, antes de
desaparecer por completo no vaivém das ondas. Ainda se debruça mais no
parapeito e procura, lá baixo, algum sinal da lâmina de aço, mas de nada lhe
vale. Num repente tresloucado quis então saltar para as rochas, cravando os
dedos na pedra para se impulsionar, mas uma rajada súbita e ascendente tomou-o
mesmo pelo peito, e como está sem os pés apoiados no chão e apenas com a
barriga sobre o parapeito, aquele empurrão fá-lo regressar para dentro, caindo
sentado no chão como um velho tonto e ridículo. Depois vem outra rajada que
sacode as portadas e as bate com tamanho estrondo que as cerra de vez, como se
as tivesse desempenado». In Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa
Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-660-4.
Cortesia
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