sábado, 23 de maio de 2015

O Canto da Sereia. Nelson Motta. «Cantando e dançando ainda mais animada, a cantora quis ficar na chuva. Deslizava voluptuosamente as mãos sobre os seios e a barriga cobertos de purpurina prateada, misturando a água da chuva ao seu suor…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Um Noir Baiano
«Com vinte e dois anos, grandes olhos cor de mel, cabelos dourados e pele permanentemente bronzeada, Sereia tinha seios fartos e pernas intermináveis. Era a nova rainha da música pop e aquele seria o carnaval de sua consagração. Com mais de um metro e oitenta, além das plataformas de quase dez centímetros, e uma grande voz, grave e potente, Sereia era uma jovem cantora de Ilhéus que em dois anos saiu dos barzinhos de Salvador para a glória nacional, invadiu as telas de TV e as ondas do rádio, vendeu mais de dois milhões de discos, estrela comercial e especiais de televisão, saiu nua na Playboy e se transformou no milionário objecto de desejo nacional. Sim, Sereia era o seu nome verdadeiro, ela foi baptizada como Sereia Maria Oliveira, uma promessa de sua mãe para Iemanjá, que lhe apareceu num sonho dizendo que a menina que esperava teria cabelos de ouro e olhos de mel, seria bonita, rica e famosa, e se chamaria Sereia. Quando a menina nasceu, ela consultou a sua mãe-de-santo, que jogou os búzios várias vezes e confirmou que Sereia conquistaria a fama e a fortuna, mas não seria feliz por muito tempo. Ao longo da sua breve carreira e até morrer, Sereia sempre esteve nas mãos de dois homens. E de uma mulher.
A sua trajetória fulminante foi construída com a ajuda decisiva de um produtor artístico, Paulinho Jesus, que a descobriu, desenvolveu e dirigiu, e de um talentoso e poderoso publicitário baiano, Tuta Tavares, que bancou a produção milionária e criou as estratégias de marketing que a transformaram numa estrela da noite para o dia. Gordo e gay, irresistivelmente simpático e inteligentíssimo, dono de uma grande agência com escritórios em São Paulo e Salvador, Tuta também trabalhava para vários políticos, entre eles o governador do Estado, Juracy Bandeira, o legendário Jotabé. Quando Sereia morreu, ele estava em campanha para uma dificílima e decisiva reeleição, aos setenta anos, bombardeado por escândalos, roubalheiras e até acusações de mortes. A oposição e os inquéritos avançavam, as intenções de voto caíam dramaticamente e os velhos aliados vacilavam. Se perdesse, estaria liquidado: com a oposição no governo, os tempos de poder quase absoluto poderiam terminar até na cadeia.
Os dois que se diziam criadores de Sereia acabaram sendo vítimas do seu próprio veneno. Como a Bahia e depois todo o Brasil, eles também se apaixonaram por ela, mas por motivos diferentes. Paulinho apaixonou-se perdidamente por sua própria criatura, viveu com ela um romance turbulento e acabou sendo traído e abandonado. Tuta, talvez porque fosse uma bicha gorda e se visse nela magro e gostoso, feminino e sedutor, encontrou em Sereia o seu ideal feminino realizado. E também seu instrumento de poder. Ela seria a sua principal arma na campanha do governador, seriamente ameaçado pelo candidato da oposição. Com Sereia cantando, as multidões encheriam as praças para ouvir o velho líder, que do alto de seus mais de cem quilos, mais uma vez encantaria as massas com os seus discursos inflamados e populistas, a sua língua ferina, seu humor devastador e o seu maior charme: uma espécie de dengo viril emprestado de Caymmi e de ACM, que seduzia homens e mulheres havia gerações. Com Sereia pedindo votos para ele e cantando o jingle de campanha nos comerciais de televisão, a vitória seria certa. A menos que ela recusasse os milhões que eles lhe ofereciam e resolvesse fazer a campanha da oposição, de graça, como queria e ameaçava Mara Moreira, a empresária de Sereia.
Mara era uma morenaça paulista, vigorosa e eficiente, de corpo atlético e raciocínio rápido, especialmente para números. Mara também sempre foi louca por Sereia, mas por outros motivos, embora parecidos com os de Tuta e Paulinho. Além de ganhar, merecidamente, caminhões de dinheiro em comissões pelos contratos de shows e discos e comerciais que negociava com dureza e que executava com competência, ela queria mais, queria tudo, queria Sereia inteira para si. Tinha uns dez anos mais que Sereia, era de uma beleza dura, com cabelos castanhos e curtos, um nariz de grande personalidade e profundos olhos negros. Mara sentia-se ameaçada de perder Sereia para a Megastar, nova agência artística que Tuta estava criando na surdina, recrutando e pagando a peso de ouro os melhores profissionais do mercado. Para Mara, Sereia não precisava mais de Tuta para nada. E sua associação com o governador Jotabé seria desastrosa. Foi o que ela me disse às vésperas do carnaval, depois da entrevista colectiva de Sereia no bar da piscina do Hotel da Bahia, quando me contratou para formar uma equipa de segurança para proteger Sereia no desfile de carnaval. Como se sabe, nós fracassámos. A cabeça de Sereia estava virada para o lado numa poça de sangue, os olhos esbugalhados e a boca aberta, como se fosse cantar. Na rua o vozerio era ensurdecedor, no alto do trio seguranças formavam uma barreira em volta do seu corpo. Um médico apresentou-se, se abaixou sobre ela, tomou-lhe o pulso e balançou a cabeça. Não era necessário ser médico para saber o que tinha acontecido. A notícia se espalhou rapidamente pelo rádio e pela televisão, e a multidão que ocupava o final da avenida Carlos Gomes e o Campo Grande se imobilizou». In Nelson Motta, O Canto da Sereia, Um Noir Baiano, Editora Objectiva, 2002, ISBN 857-302-482-8.

Cortesia de Objectiva/JDACT