quinta-feira, 14 de maio de 2015

A Obra ao Negro. Margueritte Yourcenar. «Ao criar a personagem de Zenão, alquimista e médico do século XVI, não conta apenas o destino trágico de um homem extraordinário. É toda uma época amarga e brutal…»

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O Longo Caminho
«Henrique Maximiliano Ligre prosseguia, em pequenas etapas, o seu caminho em direcção a Paris. Tudo ignorava sobre as querelas que opunham o rei ao imperador. Sabia apenas que a paz reinante havia alguns meses se ia esfiapando como uma veste já muito usada. Não era segredo para ninguém que Francisco de Valois continuava à espreita do Milanês como um amante infortunado espia a sua bela; sabia-se, de fonte segura, que se ocupava, à socapa, em equipar e concentrar junto às fronteiras do duque de Sabóia um exército totalmente novo, encarregado de ir buscar a Pavia as suas perdidas esporas. Misturando com frases soltas de Virgílio as secas narrativas de viagem do banqueiro seu pai, Henrique Maximiliano imaginava, para lá das montanhas couraçadas de neve, filas e filas de cavaleiros a descerem para os grandes plainos férteis e belos como um sonho: planícies ruivas, nascentes borbotejantes onde brancos rebanhos vêm beber, cidades cinzeladas como cofres regurgitantes de oiro, especiarias e coiro trabalhado, ricas como feitorias, solenes como igrejas; jardins cheios de estátuas, salas cheias de manuscritos raros; mulheres vestidas de seda afáveis para o grande capitão; toda a espécie de requintes de mesa e de deboche e, sobre as mesas de prata maciça, em ânforas de vidro de Veneza, o brilho macio do malvasia.
Deixara sem pesar, alguns dias antes, a sua casa natal de Bruges e o seu futuro como filho de comerciante. Um sargento coxo, que se vangloriava de ter estado em Itália no tempo de Carlos VIII, mimara-lhe, certa noite, os seus altos feitos e descrevera-lhe todas aquelas raparigas e todas aquelas sacas de oiro sobre as quais calhara fazer mão baixa aquando da pilhagem das cidades. Henrique Maximiliano pagara-lhe a tagarelice com uma caneca de vinho na taberna. Uma vez em casa, disse para consigo que já era tempo de ir, por sua vez, avaliar da redondez do mundo. O futuro condestável hesitou entre alistar-se nas tropas do imperador ou nas do rei da França; acabou por jogar a decisão a cara ou coroa; perdeu o imperador. Uma criada divulgou-lhe os preparativos da partida. Henrique Justo começou por pregar uns sopapos no filho pródigo, mas depois, mais calmo, ao ver o filho mais novo de saias compridas passeado à trela sobre a carpette do parlatório, desejou, jocosamente, ao mais velho que um bom vento o levasse atrás desses desaustinados dos franceses. Movido, de certo modo, pelas suas entranhas paternas, mas também muito por bravata, para provar a si próprio que tinha o braço comprido, prometeu intimamente escrever, a seu devido tempo, ao seu agente lionês, mestre Muzot, que lhe recomendasse esse filho ingovernável ao almirante Chabor de Brion, que muito endividado estava para com o banco Ligre. Por muito que Henrique Maximiliano tentasse sacudir dos pés a poeira do escritório familiar, nem por isso se livrava de ser o filho de um homem que elevava ou baixava o custo das mercadorias e fazia empréstimos aos príncipes. A mãe do herói incipiente encheu-lhe os bolsos de vitualhas e entregou-lhe, às escondidas, o dinheiro para a viagem.
Ao passar por Dranoutre, onde seu pai possuía uma casa de campo, persuadiu o feitor a deixá-lo trocar o cavalo que levava, e que já coxeava, contra o mais belo animal que havia na cavalariça do banqueiro. Vendeu-o mais tarde em Saint-Quentin, em parte porque essa magnífica montada aumentava como que por magia as contas somadas na ardósia dos taberneiros, em parte porque equipagem tão rica o impedia de saborear a seu bel-prazer as alegrias do caminho. Para fazer render o seu pecúlio, que se lhe escapava por entre os dedos mais depressa do que imaginara, comia juntamente com os carreteiros o toucinho rançoso e o grão dos albergues mais miseráveis e dormia à noite sobre a palha, perdendo, contudo, de bom grado, em rodadas e ao jogo, o dinheiro assim economizado com melhores pousadas. De vez em quando, nalguma quinta isolada, uma viúva caridosa oferecia-lhe do seu pão e do seu leito. Não esquecera os belos escritos: trazia os bolsos cheios de pequenos volumes forrados de pele de cabrito, sacados de antemão, à conta da futura herança, da biblioteca de seu tio, o cónego Bartolomeu Campanus, que coleccionava livros. Ao meio-dia, estendido na relva, ria às gargalhadas com alguma facécia latina de Marcial, ou então, mais sonhador, cuspindo melancolicamente para uma poça estagnada, imaginava alguma discreta e recatada dama, a quem dedicar em sonetos, à maneira de Petrarca toda a sua alma e a sua vida. Tinha um sono agitado; os sapatos apontavam para o céu como torres de igreja; os altos caules de aveia eram ume companhia de soldados de infantaria vestidos com cotas verdes; e uma papoila, uma linda rapariga de saiote arregaçado». In Margueritte Yourcenar, A Obra ao Negro, Publicações dom Quixote, tradução de Ramos Rosa, Luísa Jorge e Manuel Gomes, 1968, 1985, ISBN 978-972-203-760-0.

Cortesia de PQuixote/JDACT