sábado, 23 de maio de 2015

Memória do Fogo. Eduardo Galeano. «Longe, na costa, o monge Roberto falsifica selos como quem reza rosários, e assim as barras de ouro mal havidas mostram o selo da Coroa. Roberto, monge beneditino do convento de Sorocaba…»

jdact e wikipedia

As caras e as Máscaras. 1701 Ouro Preto. Artes Malabares
«(…) O morro de prata de Potosí não é miragem, nem os socavões fundos do México estão guardando apenas delírios e trevas; e os rios do centro do Brasil dormem em leitos de ouro de verdade. O ouro do Brasil é distribuído em sorteios ou punhaladas, pela sorte ou pela morte. Ganha imensas fortunas quem não perde a vida, embora o rei português fique com a quinta parte de tudo. A quinta parte, aliás, é modo de falar. Muito, muito ouro foge de contrabando e isso não pode ser evitado nem que ponham tantos guardas como árvores nos bosques fechados da região. Os frades das minas brasileiras dedicam mais tempo a traficar ouro que a salvar almas. Os santos de madeira oca servem de vasilhame para tais misteres. Longe, na costa, o monge Roberto falsifica selos como quem reza rosários, e assim as barras de ouro mal havidas mostram o selo da Coroa. Roberto, monge beneditino do convento de Sorocaba, fabricou também uma chave toda poderosa, que derrota qualquer fechadura.

1703. Lisboa. O ouro, passageiro em trânsito
Faz um par de anos, o governador-geral do Brasil lançou profecias tão certeiras quanto inúteis. Da Bahia, João Lencastre advertiu ao rei de Portugal que os bandos de aventureiros converteriam a região mineira em santuário de criminosos e vagabundos; e acima de tudo, anunciou ao rei outro perigo muito mais grave: em Portugal poderia acontecer, com o ouro, a mesma coisa que na Espanha com a prata; na mesma hora em que recebe a sua prata da América, a Espanha lhe diz adeus com lágrimas nos olhos. O ouro brasileiro poderia entrar pela baía de Lisboa e continuar viagem pelo rio Tejo, sem parar em chão português, rumo a Inglaterra, França, Holanda, Alemanha... Como se fosse eco da voz do governador, é assinado o tratado de Methuen. Portugal pagará com o ouro do Brasil os tecidos ingleses. Com o ouro do Brasil, colónia alheia, a Inglaterra dará um tremendo impulso ao seu desenvolvimento industrial.

1709. Ilhas de Juan Fernández. Robinson Crusoé
O vigia anuncia fogos distantes. Para buscá-los, os flibusteiros do Duke mudam a rota e põem a proa em direcção à costa do Chile. A nau se aproxima das ilhas de Juan Fernández. Uma canoa, um talho de espuma, vem ao seu encontro, lá da fila de fogueiras. Sobe na coberta um novelo de cabelos e imundície, que treme de febre e emite ruídos pela boca. Dias depois, o capitão Rogers vai entendendo. O náufrago chama-se Alexander Selkirk e é um colega escocês, sábio em velas, ventos e saques. Chegou à costa de Valparaíso na expedição do pirata William Dampier. Graças à Bíblia, ao punhal e ao fuzil, Selkirk sobreviveu mais de quatro anos numa dessas ilhas sem ninguém. Com tripas de cabrito soube armar artes de pescaria; cozinhava com sal cristalizado nas rochas e para a iluminação usava óleo de lobos-marinhos. Construiu uma cabana nas alturas e, ao lado, um curral de cabras. No tronco de uma árvore marcava a passagem do tempo. A tempestade lhe trouxe restos de um naufrágio e também um índio quase afogado. Chamou ao índio Sexta-Feira, porque esse era o dia. Dele aprendeu o segredo das plantas. Quando chegou o grande barco, Sexta-Feira preferiu ficar. Selkirk jurou que ia voltar, e Sexta-Feira acreditou. Dentro de dez anos, Daniel Defoe publicará, em Londres, as aventuras de um náufrago. Em seu livro, Selkirk será Robinson Crusoé, nascido em York. A expedição do pirata britânico Dampier, que tinha limpo a costa do Peru e do Chile, se transformará numa respeitável viagem de comércio. A ilhota deserta e sem história saltará do Pacífico para a boca do Orinoco, e o náufrago viverá nela vinte e oito anos. Robinson também salvará a vida de um selvagem canibal: master, amo, será a primeira palavra que ensinará em língua inglesa. Selkirk marcava com a ponta de uma faca as orelhas de cada cabra que capturava. Robinson projectará a divisão da ilha, seu reino, para vendê-la em lotes; marcará cada objecto que recolher do barco naufragado, fará a contabilidade de tudo que produza na ilha e fará o balanço de cada situação, o dever das desgraças, o haver das sortes. Robinson atravessará, como Selkirk, as duras provações da solidão, o pavor e a loucura; mas na hora do resgate Alexander Selkirk é um espantalho esfarrapado que não consegue falar e se assusta com tudo. Robinson Crusoé, ao contrário, invicto domador da natureza, voltará para a Inglaterra, com o seu fiel Sexta-Feira, fazendo contas e projetando aventuras.

1711. Paramaribo. Elas calaram-se
Os holandeses cortam o tendão de Aquiles do escravo que foge pela primeira vez, e quem insiste fica sem a perna direita; mas não há jeito de evitar que se difunda a peste da liberdade no Suriname. O capitão Molinay desce pelo rio até Paramaribo. A sua expedição volta com duas cabeças. Foi preciso decapitar as prisioneiras, porque já não se podiam mover inteiras através da selva. Uma chama-se Flora, a outra, Sery. Elas ainda têm os olhos pregados no céu. Não abriram a boca apesar dos açoites, do fogo e das tenazes incandescentes, teimosamente mudas como se não tivessem pronunciado palavra alguma desde o remoto dia em que foram engordadas e untadas de óleo e lhes rasparam os cabelos, desenhando-lhes nas cabeças estrelas e meias-luas, para vendê-las no mercado de Paramaribo. Todo o tempo mudas, Flora e Sery, enquanto os soldados lhes perguntavam onde se escondiam os negros fugidos: elas olhavam o céu sem piscar, perseguindo nuvens maciças como montanhas que andavam lá no alto, à deriva.

Elas levam a vida nos cabelos
Por mais negros que crucifiquem ou pendurem em ganchos de ferro que atravessam as suas costelas, são incessantes as fugas nas quatrocentas plantações da costa do Suriname. Selva adentro, um leão negro flameja na bandeira amarela dos cimarrões. Na falta de balas, as armas disparam pedrinhas ou botões de osso; mas a floresta impenetrável é o melhor aliado contra os colonos holandeses. Antes de escapar, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem as cabeças e fecundam, assim, a terra livre». In Eduardo Galeano, Memória do Fogo, As Caras e as Máscaras, 1997, tradução de E. Nepomuceno, L&PM Editores, 2004, ISBN 978-852-542-917-9.

Cortesia de LPM/JDACT