quinta-feira, 7 de maio de 2015

O Capitão Nemo e Eu. Álvaro Guerra. «Tudo o que está fora de mim reconheço, só o tempo me deixou, tal como se alguém bebesse de um trago toda a água até então imóvel dentro desse jarro cilíndrico e esguio com seu pescoço de ganso e sua boca de serpente»

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Crónica das horas aparentes. Sono. Sonhos
«Que perdi a memória, dizem. E logo dão um nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro paredes brancas e no tecto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos rectângulos da porta e da janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem a existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas das rochas, imagem última, única, fria, dureza e frio diversos dos que adivinho nas superfícies polidas do copo e do jarro sobre a mesa, ao meu lado esquerdo, onde, consoante o sol, assim o filtram no seu vidro sem que dele conservem o menor rasto, que não de mim, pois neles vou imprimir com os dedos minuciosos desenhos a lembrar outras matérias, talvez tronco cortado pelo nó, talvez... Tudo o que está fora de mim reconheço, só o tempo me deixou, tal como se alguém bebesse de um trago toda a água até então imóvel dentro desse jarro cilíndrico e esguio com seu pescoço de ganso e sua boca de serpente, eu que vagamente me obrigo a pensar no corpo da mulher que veio, há pouco, dizer-me que perdi a memória e unir os seus lábios aos meus tão levemente como a ondulação das cortinas quase transparentes a embaciarem o verde-escuro da árvore lá fora, visita tão breve como o beijo e o nome, o seu, e um obstinado brilho nos olhos que irremediavelmente reconhecerei, mais tarde. Voltará.
Em vão procuro uma imperfeição na lisura destas paredes, um pouco de estuque falhado, uma mancha de humidade, uma fissura que confirme os meus planos, a utopia... Memória e palavra convivem perfeitamente. Uma excepção, um instante, claro. Eu trazia em mim um projecto de perdição, não este, mas a profunda recusa da morte mansa e doméstica, e afinal soube, ao regressar do sono, conhecer a dor, a fome, a sede, o copo, o vidro, a cortina ondulante, o ar em movimento, apenas não me reconheci e aceitei com indiferença um nome que disseram ser o meu. Por outro lado, as palavras são, sem que as pronuncie, mais fluentes que nunca e ganham a fulgurância dos projécteis infalíveis e a suavidade ambígua de uma sabedoria que finge ignorar a sua história. Mas isto não vai durar e começou a perder-se no momento em que despertei porque, ainda que do tempo não encontre a medida, o primeiro fragmento ocupou o seu lugar no puzzle, com a visita da mulher e o beijo e a palavra memória na sua boca...
Que sabia levemente a sangue e se ocupava sabiamente da minha língua, sem poder evitar uma desagradável colisão de dentes, boca furtiva e apressada, como a minha mão procurando o seio que nela cabia e cuja ponta endurecia onde a linha da vida encontra a do coração; sem palavras e só com o nosso medo e um pouco do medo dos outros, fomos a uma cave fria, cheia de objectos de um outro tempo e esquecidos, entre os quais se contavam um gigantesco corno da abundância, um barómetro sem ponteiro, um retrato do Kaiser, três cadeiras partidas, um molho de chaves ferrugentas e uma velha mesa de cozinha manchada por qualquer misterioso líquido, sobre a qual nos deitámos e eu descobri as virilhas brancas e macias onde tudo acabou no esforço desajeitado de ir mais além, num jacto quente e espesso que ela cuidadosamente limpou com o avental que nem sequer tinha tirado. Não trocámos uma palavra... Com as palavras e uma presença indecisa, eis que começo a morrer de novo». In Álvaro Guerra, O Capitão Nemo e Eu, Crónica das horas aparentes, Publicações dom Quixote, 1973, 2000, ISBN 972-201-828-0.

Cortesia de BN/PdQuixote/JDACT