«(…)
Sei sem saber dos seus amores, do seu único amor, e que a vida foi demasiado
injusta para essa mulher ao oferecer-lhe o que ela não poderia aceitar. O melhor
de si mesma e a memória disso ficaram encerrados num púdico halo de clandestinidade.
A revolução falhou o seu tempo e talvez esteja aí a explicação das suas
lágrimas de Abril, o seu último Abril, que não eram só de alegria mas corriam
também sobre o seu passado, no único momento em que senti que ela se encerrava
entre recordações silenciadas. Que direito me daria acesso àquele coração
solitário? O seu sentido da justiça poupou-me a um segredo que lhe devorava a
juventude. Justiça?!... Que digo eu! Amor, sim. Uma prova mais. E agora é que
me permito chorar, desatar o nó dos soluços presos na garganta, na boca o sal
das lágrimas, à simples lembrança do roçagar de um vestido de seda numa tarde
de verão, do seu hábito de entrelaçar os dedos finos nas contas de um colar, da
sua mão afastando-me da testa uma madeixa rebelde.
Subitamente,
encontro-me vítima do meu egoísmo. Tarde de mais... Retribuí tão pouco o amor
de Judite de que me chegam notícias claras, o amor impossível que nunca entendi
antes desta ausência. Fingimo-nos demasiado inteligentes e jogámos um jogo com
regras diferentes para cada um de nós. Oh, triste vitória a dos preconceitos!
Lágrimas por esse equívoco irremediável, enquanto procuro o seu perfume numa écharpe que lhe envolvia os ombros nos
dias, já tão distantes, em que publiquei o primeiro livro e lhe mostrei a primeira
mulher.
Durante
a revolução breve o amor foi diletante... Nesse tempo nunca encontrei a actriz Vera
Rios. Claro que jogávamos às escondidas. Porque a vi de longe, no ecrã da
televisão, em acalorados comícios unitários, advogando a justa luta dos trabalhadores do espectáculo, e na Praça do
Comércio, cheia de camponeses alentejanos e operários da cintura industrial de
Lisboa, quando se pregava a tomada do poder pelo proletariado. Só depois dei
com ela, num serão de amigos e conhecidos. Para além dos ressentimentos
acumulados de longe, nesse longo ano de 1975,
havia outro passado. Os seus olhos incansáveis logo me envolveram numa ternura
húmida, escorregadia, magoada, feita de outras recordações. O amor e o ódio sempre
andaram à solta naquele grande coração que, da amálgama, tira afectos carregados
de perigos que acabam por vitimá-la. Anda já perto dos cinquenta anos e viveu
muito depressa desde que, ainda menina Marília Sales dos bailes do Clube Vila-Velhense,
fugiu para os palcos da revista do Parque Mayer, nos anos 40. Entre amores
breves e tumultuosos, subiu a rampa do êxito até ao teatro sério. No final da
década de 60, juntou-se aos intelectuais e políticos que mantinham a chama da
resistência antifascista. E, durante a revolução, levou Brecht às aldeias serranas
das Beiras e às povoações do litoral duriense, com óptimas intenções e péssimos
resultados.
Estou
desempregada..., disse. Não como um lamento, mas como uma acusação que me era
pessoalmente dirigida. Escapáramos para um bar de pouca luz e muito fumo, na Rua
do Século. Fixei esses olhos intactos, negros e íntimos das lágrimas, e reconheci-os,
bem como a boca sensual que se abrira como um fruto maduro aos amores dos seus
vinte anos. Mea culpa..., balbuciei. Nunca
me tomei por Deus. Não fui eu que desatei a fúria dos elementos. Com um brusco
movimento de cabeça, libertou parte da testa coberta por uma madeixa de cabelos
pintados com a cor do fogo, estendeu os braços, colocou as mãos sobre as minhas
e eu senti que elas eram o que de mais antigo e cansado havia no seu corpo. Ninguém
é Deus, disse ela. Em todo o caso, nunca desejei a ninguém todo o mal deste
mundo. Nem todo o bem. Sim... Desejo-o para mim mesmo. Como toda a gente. Gostaria
de não ter dito o que disse. No abandono dessas mãos abertas, cruzadas de veias
azuis, ela clamava por alguém capaz de outro abandono. Que posso fazer por ti?,
perguntei. Tudo... Isto é, nada, respondeu com uma tristeza cálida. Abanei a
cabeça afirmativamente. E as minhas mãos responderam, enfim, às suas mãos
abandonadas, enquanto um remorso insensato e uma inesperada ternura punham nos meus
olhos o brilho das suas lágrimas». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos,
Edições o Jornal, colecção Dias de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.
Cortesia
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