quinta-feira, 21 de maio de 2015

Crimes Imperfeitos. Álvaro Guerra. «O amor e o ódio sempre andaram à solta naquele grande coração que, da amálgama, tira afectos carregados de perigos que acabam por vitimá-la. Anda já perto dos cinquenta anos…»

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«(…) Sei sem saber dos seus amores, do seu único amor, e que a vida foi demasiado injusta para essa mulher ao oferecer-lhe o que ela não poderia aceitar. O melhor de si mesma e a memória disso ficaram encerrados num púdico halo de clandestinidade. A revolução falhou o seu tempo e talvez esteja aí a explicação das suas lágrimas de Abril, o seu último Abril, que não eram só de alegria mas corriam também sobre o seu passado, no único momento em que senti que ela se encerrava entre recordações silenciadas. Que direito me daria acesso àquele coração solitário? O seu sentido da justiça poupou-me a um segredo que lhe devorava a juventude. Justiça?!... Que digo eu! Amor, sim. Uma prova mais. E agora é que me permito chorar, desatar o nó dos soluços presos na garganta, na boca o sal das lágrimas, à simples lembrança do roçagar de um vestido de seda numa tarde de verão, do seu hábito de entrelaçar os dedos finos nas contas de um colar, da sua mão afastando-me da testa uma madeixa rebelde.
Subitamente, encontro-me vítima do meu egoísmo. Tarde de mais... Retribuí tão pouco o amor de Judite de que me chegam notícias claras, o amor impossível que nunca entendi antes desta ausência. Fingimo-nos demasiado inteligentes e jogámos um jogo com regras diferentes para cada um de nós. Oh, triste vitória a dos preconceitos! Lágrimas por esse equívoco irremediável, enquanto procuro o seu perfume numa écharpe que lhe envolvia os ombros nos dias, já tão distantes, em que publiquei o primeiro livro e lhe mostrei a primeira mulher.
Durante a revolução breve o amor foi diletante... Nesse tempo nunca encontrei a actriz Vera Rios. Claro que jogávamos às escondidas. Porque a vi de longe, no ecrã da televisão, em acalorados comícios unitários, advogando a justa luta dos trabalhadores do espectáculo, e na Praça do Comércio, cheia de camponeses alentejanos e operários da cintura industrial de Lisboa, quando se pregava a tomada do poder pelo proletariado. Só depois dei com ela, num serão de amigos e conhecidos. Para além dos ressentimentos acumulados de longe, nesse longo ano de 1975, havia outro passado. Os seus olhos incansáveis logo me envolveram numa ternura húmida, escorregadia, magoada, feita de outras recordações. O amor e o ódio sempre andaram à solta naquele grande coração que, da amálgama, tira afectos carregados de perigos que acabam por vitimá-la. Anda já perto dos cinquenta anos e viveu muito depressa desde que, ainda menina Marília Sales dos bailes do Clube Vila-Velhense, fugiu para os palcos da revista do Parque Mayer, nos anos 40. Entre amores breves e tumultuosos, subiu a rampa do êxito até ao teatro sério. No final da década de 60, juntou-se aos intelectuais e políticos que mantinham a chama da resistência antifascista. E, durante a revolução, levou Brecht às aldeias serranas das Beiras e às povoações do litoral duriense, com óptimas intenções e péssimos resultados.
Estou desempregada..., disse. Não como um lamento, mas como uma acusação que me era pessoalmente dirigida. Escapáramos para um bar de pouca luz e muito fumo, na Rua do Século. Fixei esses olhos intactos, negros e íntimos das lágrimas, e reconheci-os, bem como a boca sensual que se abrira como um fruto maduro aos amores dos seus vinte anos. Mea culpa..., balbuciei. Nunca me tomei por Deus. Não fui eu que desatei a fúria dos elementos. Com um brusco movimento de cabeça, libertou parte da testa coberta por uma madeixa de cabelos pintados com a cor do fogo, estendeu os braços, colocou as mãos sobre as minhas e eu senti que elas eram o que de mais antigo e cansado havia no seu corpo. Ninguém é Deus, disse ela. Em todo o caso, nunca desejei a ninguém todo o mal deste mundo. Nem todo o bem. Sim... Desejo-o para mim mesmo. Como toda a gente. Gostaria de não ter dito o que disse. No abandono dessas mãos abertas, cruzadas de veias azuis, ela clamava por alguém capaz de outro abandono. Que posso fazer por ti?, perguntei. Tudo... Isto é, nada, respondeu com uma tristeza cálida. Abanei a cabeça afirmativamente. E as minhas mãos responderam, enfim, às suas mãos abandonadas, enquanto um remorso insensato e uma inesperada ternura punham nos meus olhos o brilho das suas lágrimas». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.

Cortesia OJornal/JDACT