sábado, 9 de maio de 2015

Neve. Nobel da Literatura. Orhan Pamuk. «As ruas estavam vazias por causa da neve, ou aquelas calçadas geladas viviam sempre desertas? Enquanto andava, ia observando atentamente os anúncios que se viam nas paredes, cartazes da campanha eleitoral…»

jdact e wikipedia

O silêncio da neve A viagem para Kars
«(…) Ele desceu do autocarro. Quando o seu pé afundou no macio tapete de neve, uma lufada de ar frio cortante entrou-lhe pelas pernas da calça. Ele reservara um quarto no Hotel Palácio de Neve. Quando procurou o motorista para lhe perguntar onde ficava o hotel, viu duas ou três fisionomias que lhe pareceram familiares entre os passageiros que esperavam a bagagem, mas, com a neve caindo tão densa e rapidamente, ele não conseguiu descobrir quem eram. Ka viu-os novamente no Café Campos Verdejantes, para onde foi depois de deixar a bagagem no hotel: um homem cansado e preocupado, mas ainda bonito e atraente, com uma mulher gorda porém vivaz que parecia ser sua companheira de toda a vida. Ka vira-os representar em Istambul na década de 70, quando eles eram os expoentes do teatro revolucionário. O nome do homem era Sunay Zaim. Enquanto contemplava o casal, deixou a cabeça divagar e finalmente chegou à conclusão de que a mulher lhe lembrava uma colega do primário. Havia outros homens na mesa deles, todos com aquela palidez mortal que revela uma vida passada no palco; o que uma pequena companhia de teatro estaria fazendo naquela cidade esquecida, ele se perguntou, numa noite de Fevereiro? Antes de sair do restaurante, que vinte anos antes estivera cheio de funcionários públicos de alto escalão, em casaco e gravata, Ka pensou ter visto um dos heróis da esquerda militante sentado noutra mesa. Mas era como se um manto de neve tivesse recoberto as suas lembranças daquele homem, do mesmo modo como fizera com o restaurante e com a própria cidade combalida e ofegante. As ruas estavam vazias por causa da neve, ou aquelas calçadas geladas viviam sempre desertas? Enquanto andava, ia observando atentamente os anúncios que se viam nas paredes, cartazes da campanha eleitoral, anúncios de escolas e restaurantes e os novos cartazes com que as autoridades municipais esperavam conter a onda de suicídios: os seres humanos são obras-primas de Deus, e o suicídio é uma blasfémia. Pelas vidraças cobertas de gelo de uma casa de chá, meio vazia, Ka avistou um grupo de homens amontoados ao redor de um aparelho de televisão. Ele alegrou-se um pouco ao ver ainda de pé aquelas velhas casas de pedra em estilo russo, que tinham feito de Kars um lugar tão especial na sua lembrança. O Hotel Palácio de Neve era um desses elegantes edifícios em estilo báltico. Tinha dois andares, com janelas compridas e estreitas, que davam para um pátio, e uma arcada voltada para a rua. A arcada tinha cento e dez anos e era alta o bastante para dar passagem, com facilidade, a charretes puxadas por cavalos; Ka sentiu um arrepio de excitação ao passar por baixo dela, mas estava cansado demais para se perguntar por quê. Digamos apenas que tinha algo a ver com uma das razões que o levaram a Kars. Três dias antes, Ka visitara a redação do Republicano em Istambul, para ver um amigo de juventude. E aquele amigo, Taner, falara-lhe das eleições municipais que se aproximavam e também do extraordinário número de jovens mulheres que, como na cidade de Batman, sucumbira à onda de suicídios. Taner chegou a dizer que se Ka quisesse escrever sobre esse assunto e ver qual era realmente a situação da Turquia depois de sua ausência de doze anos, devia pensar em ir a Kars; como não havia ninguém disponível para essa tarefa, ele podia conseguir uma credencial de jornalista; e além do mais, disse ele, Ka poderia estar interessado em saber que a sua ex-colega de escola İpek residia agora em Kars. Embora separada do marido, Muhtar, ela continuava na cidade e estava vivendo com o pai e a irmã no Hotel Palácio de Neve. Enquanto ouvia as palavras de Taner, que escrevia comentários políticos para o Republicano, Ka lembrava-se de quanto İpek era bonita. Cavit, o recepcionista, estava assistindo à televisão. Ele entregou a chave a Ka, que subiu ao segundo andar, encaminhando-se para o quarto 203; tendo fechado a porta atrás de si, sentiu-se mais calmo. Depois de cuidadosa análise, concluiu que, apesar dos temores que o assaltaram durante a viagem, nem o seu coração nem a sua cabeça estavam perturbados ante a possibilidade de İpek se encontrar no hotel. Depois de uma vida em que toda a experiência amorosa trazia a marca da vergonha e do sofrimento, a perspectiva de apaixonar-se deixava Ka tomado de um medo intenso, quase instintivo. No meio da noite, antes de ir dormir, Ka atravessou o quarto de pijama, abriu as cortinas e observou os flocos grossos e pesados de neve que caíam sem cessar». In Orhan Pamuk, Kar, 2002, Neve, Nobel da Literatura, tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 2006, ISBN 853-590-922-2.

Cortesia Cletras/JDACT