quinta-feira, 14 de maio de 2015

Memória. Álvaro Guerra. «… e o mar que é nosso e dele nós e as ilhas e as terras e os escravos e a pimenta e o ouro e o marfim pesados como uma herança que havemos de gastar até ao último cruzado…»

jdact

Eu. Memória
«No calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões zumbidos aos ouvidos meus sentidos todos na fusão com o nada e desesperado disso que eu sabia ser tarde para a escolha que não fiz e matava e no meio desse calor morria e me abria o caminho da justiça sem voz já o silêncio pesava e prometia delírios de possesso que os tive e deles saí já homem sem o resgate que quis e sempre perseguindo este meu futuro que na verdade vem da mais aguda dor da morte da mais monstruosa memória que a antecede humedecida com uma lágrima ainda que caída dos olhos ou do que resta dos olhos no meio de uma cabeça rebentada a tiros os mesmos com que cheguei a esta tão nítida visão de um corpo o meu suspenso e trespassado a caminho da terra quente gretada mas assim mesmo prenhe a acolher-me numa envolvente fertilidade como a um feto regressando à madre não obstante meu dedo lesto no gatilho a disparar-me em cada uma das minhas balas encharcando-me com o sangue do mundo e o sofrimento e a violência que do berço me vinham ensinando a imaginar e então pensei só no acertar que é também uma angústia e um modo de sobreviver no mato ou algures quer a morte ou a vida sejam quer apenas em metáforas soldados de chumbo castelos aviões e pistolas de infância e também os inofensivos jogos de adulto explodindo e desintegrando-se no delírio que passou através dos ferros brancos da cama qual fera rebentando sua jaula ou desejado diabo redentor saltando em cima da minha barriga e então nasci de súbito confirmando o celerado que disse ser a morte o princípio de toda a vida e eu nela com a memória do meu princípio assim neste visitar-me e reconhecer o rosto e o gesto uma paragem brusca um espanto de aqui estar a convencer-me de razões para comigo que sei como se morre nesta guerra de todos os anos discreta guerra de poucos mortos por semana e bondosas senhoras que mandam tantos presentes para os valentes soldados e os mais valentes de todos e os que mais matam vêm de medalha ao peito matar saudades à terra onde estoiram foguetes e sai a banda e é portanto a morte o princípio de tudo este nada estes heróis estas bandeiras pesados como um remorso atrás das impenetráveis paredes de pedras grandes lajes dos túmulos dos reis e dos santos muros de castelos conventos catedrais lendas profecias fantasmas e o mar que é nosso e dele nós e as ilhas e as terras e os escravos e a pimenta e o ouro e o marfim pesados como uma herança que havemos de gastar até ao último cruzado que é o preço de tudo quanto perseguimos e está no vento e dentro de nós respira e pulsa nossa ânsia e combate nosso doce e nosso amargo que eu na morte chorei e gritei e clamei pelo nome de liberdade uma suspeita uma vontade que é nossa nossa ainda que emparedados neste passado de névoa de onde só nós poderemos sair vivos mesmo quando ou só quando chegados para demolir as velhas casas da família primeiro os painéis de azulejos o da entrada com o pajem empunhando o bastão e os outros nos vãos das janelas junto aos bancos de pedra com aves e cornucópias de um mundo azul e branco sobre as tábuas carunchosas o pó antigo deslizando para dentro de caves frescas garrafeiras vazias teias de aranha e baús e depois as paredes e os metros quadrados para o edifício de quatro andares e assim até à liquidação total da qual sobram mancas mobílias de estilo que não cabem em parte nenhuma o arcabuz os candelabros e a colecção da illustration com gravuras da guerra da Crimeia e da guerra russo-japonesa folheadas na infância durante a qual aprendi mal a violência antes daquela minha morte daquele meu princípio e isso foi entre beijos cachecóis xaropes bonitas palavras e respeito e tudo isto magoa tão perto como um desmoronamento ainda no seu eco e estas paragens de capricho para sem lamentos assumir a terraplanagem que começamos nós que do napalm e da tortura só conhecemos o clarão longínquo e os gritos e a terra queimada e as feridas e assim dizemos o não que não fazemos». In Álvaro Guerra, Memória, Editorial Estampa, Lisboa, 1971.

Cortesia EEstampa/JDACT