«Mal
se extinguiram os ecos das manifestações do fim da guerra, Vila Velha reentrou
no quotidiano, com fumos de vitória e o mesmo pasmo boleando as esquinas e as
almas. Até os fascistas, os bravos fascistas vila-velhenses, se apoderavam da
vitória dos Aliados, como se tivessem andado nos maquis de França, à
manche de Spitfires ou aos comandos de algum tank do general Paton. Em tempo de paz escolhia-se o triunfo na
guerra dos outros. E vigiavam-se promessas de progresso. Um dos primeiros
vila-velhenses a concretizar aspirações de vulto foi o Belmiro Belezas, filho
do taberneiro Victor Belezas, um rapaz com ambições e estudos liceais
desperdiçados ao balcão do pai, entre copos de vinho, carapaus de escabeche e
pastéis de bacalhau. Conseguiu do abastado José Costa, o Tainha Rico,
sociedade e crédito para realizar o seu sonho: um café moderno, como os de
Lisboa. O anúncio de concorrência iminente apanhou o galego proprietário do Café
Central, ex-República, com setenta anos e frequentes crises de
reumático. À novidade encolheu os ombros e, por desfastio, sugeriu: e se
pintássemos as paredes?... De verde-adiantou o filho, que era de poucas falas. Manuel
Maria voltou a encolher os ombros. Tanto se lhe dava a cor das paredes, desde
que continuasse a ver a cor do dinheiro da freguesia. Arrastando os pés, dirigiu-se
ao balcão, largou a bandeja em cima do mármore, despiu o casaco branco e,
encaminhando-se para a porta interior que ligava o estabelecimento à residência,
disse para o herdeiro: amanhã, passa pelo Praga de Mãe. Pede-lhe orçamento.
O relógio da Câmara deu meia-noite e os últimos três clientes arrumaram o
dominó, mastigando bocejos. António Maria deu as boas-noites ao pai e ficou a
olhar as paredes acastanhadas de fumo, manchadas de humidade, procurando na
memória a cor primitiva. Em vão. Mais tarde ou mais cedo, mesas e cadeiras
novas, pensou. Pela primeira vez, sentiu-se dono e senhor do Café
Central. Depois de correr os taipais, olhou o cartaz encaixilhado onde
Santa Camarão esboçava um upercut
decisivo que era já uma recordação. Subiu a guarda, arqueou o tronco, ligeiro
de pés, aplicou uma finta a duas mesas e acertou um directo no futuro. Sabia-se
predestinado a ganhar o seu combate com o tempo, num ringue pintado de fresco,
de verde. Nesse Verão de 45, outras transformações se forjavam.
Da
Lurdinhas Paiva dos saudosos chás das quintas-feiras com o falecido farmacêutico
passara-se à virtuosa dona Lurdes Paiva Soares e, desta, à respeitada viúva
Soares. Aproximava-se então a terceira metamorfose, prematuramente crismada
pelo advogado Vicente Mourão como fase da viúva
alegre. O primeiro sinal foi a reabertura da Farmácia Asclepius,
representando o abandono do persistente pê-agá um sintomático corte com o
passado. Dona Lurdes adaptando-se a novas circunstâncias, aliás favoráveis,
desistira do projecto da loja de modas. Pelo menos às drogas mantém-se fiel,
insinuava maliciosamente o notário. Quisera o acaso que um rapaz de vila Nova,
filho de um pequeno industrial de curtumes, de sua graça Emílio Coelho, concluísse
o curso de Farmácia, após uma odisseia de catorze anos de larga boémia e
moderada frequência da Universidade de Lisboa. O surpreendente epílogo da
carreira universitária de Coelho veio muito a propósito resolver os embaraços
de dona Lurdes que assim podia manter-se no ramo do querido defunto. Sem
delongas, propôs ao licenciado direcção técnica, bom ordenado e percentagem. Tanto
bastou para que a Vila murmurasse outros entendimentos, perversamente
instigados pela feroz concorrência da Farmácia Ideal com a Gertrudes Purificação
à cabeça.
À
actualização da ortografia na fachada do estabelecimento juntava-se a fama de
boémio do Emílio Coelho com a sua silhueta à Dominguin e o seu bigode à Clark
Gable. As bocas da Vila destinavam-no já a protagonista do período viúva alegre de dona Lurdes, se bem que,
nesse Verão, mal se detectassem os inocentes indícios de um ou outro olhar
pestanudo e lânguido ou uma presença mais demorada da viúva entre unguentos e
xaropes. Para falatório, porém, não bastavam a Vila Velha os negócios do mundo
e os reais problemas do Concelho. Que casos graves mereciam mais atenção ficou
logo demonstrado, em princípios de Agosto, quando caiu sobre Hiroshima a primeira
bomba atómica. A entrada numa nova era em que o homem provava ser capaz de
destruição universal apanhou parte da Vila em merecido gozo das delícias
estivais. Apesar disso e da considerável distância da pavorosa explosão, chegaram
a Vila Velha ondas de choque». In Álvaro Guerra, Café Central, Edições O
Jornal, Lisboa, 1984, Depósito legal nº 5030.
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