«A
morte do rei constituiu, em todos os tempos, um fenómeno de grande impacto
social e político, sobretudo se ocorria em circunstâncias trágicas ou se punha
em risco o curso da história, como aconteceu nos casos de Sebastião I ou de
Carlos I. A medicina prestou sempre grande atenção às figuras reais, sendo convocados
os médicos mais conceituados do reino sempre que a doença ameaçava a
integridade do monarca. Em cada época, os clínicos deram o seu melhor para
mitigar o sofrimento da família real, com recurso às mais avançadas
terapêuticas disponíveis, sendo pontualmente requisitada a colaboração de
eminentes figuras médicas estrangeiras, quando se suspeitava da insuficiência
científica dos clínicos nacionais. A dinastia de Bragança reinou em Portugal
durante quase três séculos, entre 1640 e 1910, e por ela passaram 14
cabeças coroadas de ambos os sexos. Apanhada na transição da monarquia
tradicional para os modelos liberais emanados da revolução francesa, a última
casa reinante procurou adaptar-se à mudança, num percurso político-social
conturbado, que incluiu massacres, revoluções, guerras civis, exílios e
regicídios, tentado e consumado. Talvez por isso o espectro do sofrimento tenha
estado sempre tão presente no seio desta família. A mortalidade infanto-juvenil
marcou presença dramática e constante na marcha genealógica da dinastia. A
morte precoce ceifou a vida à maioria dos varões primogénitos, príncipes
herdeiros por direito, impedindo-os de atingir o trono. É a lendária Maldição
dos Bragança, um tenebroso anátema lançado à família real por um frade
mendicante a quem João IV terá recusado esmola. Apesar dos desvelados cuidados
médicos de que foram alvo, apenas três monarcas brigantinos ultrapassaram os 60
anos de idade, atestando as conhecidas limitações da medicina de então. Os
grandes flagelos da época como a sífilis, a tuberculose e a febre tifóide, mas também
a patologia vascular cerebral, a loucura e a morte violenta atormentaram a
última dinastia, cujo trono ruiu há 100 anos, como consequência indirecta do
trágico fim do seu penúltimo caudilho. A doença do rei era institucionalmente
assumida como matéria de interesse publico, pelo que os boletins clínicos
relatando os seus estados mórbidos mereciam edição destacada na Gazeta de Lisboa. Tais registos
representam hoje preciosos documentos para o estudo da história da medicina
portuguesa.
A
saúde da família real, enquanto assunto de estado, constituía também
preocupação diplomática. A correspondência entre a corte e os embaixadores de
Portugal acreditados nas diversas capitais da Europa de então, proporciona
interessantes detalhes sobre a saúde do rei e da sua família. Reciprocamente,
também as delegações estrangeiras representadas em Lisboa se apressavam a
informar os seus governos, sempre que algum contratempo perturbava o bem estar
do rei ou de algum importante membro da corte. Alguns médicos da real câmara
tiveram a preocupação de editar para a posteridade curiosos e detalhados
registos das observações clínicas e das terapêuticas aplicadas aos seus régios
pacientes, recheados de pitorescos conceitos fisiopatológicos e de bizarros
princípios farmacológicos, tão típicos da medicina pré-científica. A análise
crítica, à luz documental, dos padecimentos dos diferentes monarcas de Bragança
e das suas causas de morte confrontam-nos, de forma fascinante, com os mais
avançados conhecimentos da medicina portuguesa de cada época, e com a
progressiva evolução do saber médico. Se durante os séculos XVII e XVIII
pontuam o empirismo da prática clínica e a ingenuidade das concepções
nosológicas, no decurso do século XIX é já notória a preocupação com o rigor
científico, procurando os clínicos objectivar, de forma racional, o curso da
doença e as causas da morte». In José Barata, A Doença e as Mortes dos
Reis e Rainhas na Dinastia de Bragança, Verso da Kapa, Lisboa, 2012, ISBN
978-989-840-654-5.
Cortesia
de Verso Kapa/JDACT