«Enquanto
Xerxes se preparava para partir para Abidos, trabalhava-se na construção das
pontes sobre Helosponto (nome antigo atribuído ao actual estreito de
Dardanelos, uma passagem entre o mar Egeu e o mar Negro, através do mar de Mármara,
e que constitui, ainda hoje, uma posição estratégica; Xerxes conseguiu
atravessá-lo em 480 a. C.), para que fosse possível a passagem da Ásia para a
Europa. Os responsáveis pela sua construção iniciaram-nas do lado de Abidos e
continuaram-nas até à encosta extremamente austera que, do outro lado, penetra
no mar. Naquele tempo os Fenícios prendiam os barcos com cordas em linho e os
Egípcios utilizavam, para o mesmo efeito, cordas de fibra de cortiça de Biblos
(nome grego para a cidade fenícia de Gebal hoje Djebail, ao norte de Beirute).
Ora, desde Abidos até à costa oposta, a distância corresponde a sete estádios.
Assim que estas pontes foram dadas por terminadas, levantou-se uma terrível tempestade,
que rebentou as cordas e despedaçou os barcos.
Quando
soube da notícia, Xerxes, indignado e encolerizado, ordenou que, em Helosponto,
fossem dadas trezentas chicotadas e que fossem derrubadas um par de videiras.
Ouvi dizer que ele enviou, juntamente com os executores da ordem, pessoas para
marcar com um ferro em brasa as águas. Castigou desta forma o mar e mandou
cortar a cabeça daqueles que haviam presidido à construção das pontes. Assim
que as suas bárbaras ordens foram executadas outros mestres-de-obras foram
incumbidos da mesma construção. Eis como eles a levaram a cabo: ligaram, de um
lado, trezentos e sessenta barcos de cinquenta remos e trirremes e, do outro
trezentos e catorze. Os primeiros apresentavam-se pelo costado no Ponto Euxino (em
grego Euxeinos Pontos, ou seja, mar hospitaleiro,
antítese que, na Antiguidade, nomeava o mar Negro, devido à existência de
nevoeiros que dificultavam extremamente a navegação) e os outros, do lado de
Helosponto, colocaram-se ao sabor da corrente, para que as cordas se
mantivessem ainda mais esticadas. Os navios assim dispostos, do lado do ponto
Euxino, lançaram grossas âncoras, a fim de resistirem aos ventos que, vindos do
Sul e do Sueste, sopravam neste mar a partir do Ocidente e do mar Egeu.
Deixaram
também, em três locais diferentes, uma passagem livre entre os barcos de
cinquenta remos, para as pequenas embarcações que quisessem entrar ou sair do
Ponto Euxino. Terminado este trabalho, esticaram-se os cabos, em terra, com a
ajuda de carros de bois. Não utilizaram cordas simples, como da primeira vez, mas
entrelaçaram cordames de linho, dois a dois, com cortiça de Biblos, quatro a
quatro. Terminada a ponte, serraram-se grandes toros de madeira, que foram
colocados seguindo o comprimento da ponte, ao lado uns dos outros, sobre cabos
bem esticados. Foram então unidos e, uma vez feito isto, colocaram-se por baixo
tábuas, juntas umas às outras, que depois foram cobertas por terra, posteriormente
aplanada. Após a conclusão deste trabalho, colocou-se uma barreira de cada
lado, por se temer que os cavalos ou outros animais se assustassem ao verem o
mar. Terminadas as pontes, bem como os diques construídos na foz do canal do
monte Atos (este canal, aberto no istmo que liga o monte Atos ao continente,
para favorecer a passagem da frota de Xerxes, havia sido escavado por
destacamentos de todos os corpos da armada persa, forçados ao trabalho pelo
chicote), a fim de impedir que a corrente tapasse a entrada, enviou-se a notícia
a Sardes, e Xerxes iniciou a sua viagem. Enquanto viajava o Sol abandonou o seu
lugar no céu e desapareceu, apesar de não haver qualquer nuvem, e, assim, a
noite tomou o lugar do dia. Xerxes, preocupado com este prodígio, consultou os
adivinhos sobre o seu significado. Estes disseram-lhe que Deus pressagiava a
ruína das cidades gregas, pois o Sol anunciava o futuro a esta nação e a Lua à
sua. Xerxes, seduzido por esta resposta, prosseguiu viagem.
No
mesmo dia em que chegaram a Abido, os persas prepararam-se para atravessar a
ponte. No dia seguinte, enquanto esperavam um pouco para ver o Sol nascer
queimaram todo o tipo de perfumes sobre a ponte, e o caminho foi coberto de
murta. Assim que apareceu, Xerxes fez libações no mar, com uma taça em ouro, e
pediu ao Sol que afastasse todos os problemas que pudessem impedi-lo de
subjugar a Europa antes de ele se pôr. Concluída a oração, lançou a taça no
Helosponto com um vaso em ouro e um sabre, segundo o costume persa. Não me
consegui decidir se, ao lançar estes objectos ao mar, ele fazia uma oferta ao
Sol ou se, arrependido por ter mandado fustigar o Helosponto, procurava
apaziguá-lo com estas ofertas». In Zurcher Margollé, Naufrágio da Frota de
Xerxes, 1997, tradução de Sara Travassos, Editorial Inquérito, 2003, ISBN
972-670-398-0.
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