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Assim intuíam vagamente os palestrantes do Café República, o Teófilo, notário,
o farmacêutico Soares e o único industrial da vila àquela data, Josué Silva
Castro, herdeiro do velho Saul, a quem se juntava, condicionada pelas
solicitações do serviço, a aquiescência apaziguadora e amiúde contraditória do
galego Manuel Maria, dono do café e o mais moderno dos cidadãos adoptivos de
Vila Velha. Já no ano passado, quando fui à Suíça ver o meu falecido irmão David,
me pareceu que essa Europa anda meio maluca..., interveio Josué Castro, o único
vila-velhense verdadeiramente viajado, com excepção de António Lencastre,
frequentador certo da Feira de Sevilha. Em Bordéus, tomaram-me por um
anarquista italiano autor de um atentado em Marselha e passei um mau bocado na
gendarmaria para conseguir explicar que era o Castro de Vila Velha. E, afinal,
como é que você viu o imperador Francisco José, ó Castro?, indagou o farmacêutico,
fascinado. Passou de carruagem, escoltado pelos granadeiros. Estava eu diante
do Parlamento admirando a estátua de Palas, e vinha ele dos lados do Castelo de
Schönbrunn. Usa suíças iguaizinhas às do António Lencastre. Talvez mais
brancas... Uma sombra de despeito gelou o olhar do Teófilo, que jamais conseguira
dominar o complexo de inferioridade causado pela longa peregrinação do Josué
por Paris, Genebra, Viena, Berlim, o mundo. E o Luís Soares, respeitado
proprietário da Pharmácia Asclepius, contemplando gravemente o enlutado Castro:
coitado do David. Um rapaz tão inteligente e brilhante... Infelizmente ainda
não se inventou o remédio radical para a tísica. Galopante, amigo Soares,
galopante. Nem os especialistas, nem as montanhas suíças lhe valeram. E olhe
que não poupámos nos contos de réis para lhe salvar a vida. Ofegante, o Fonseca
estafeta, melena desgrenhada, carregado de embrulhos, gritou à porta do café: temos
outra bernarda para breve, com tropa na rua! No Rossio, ferviam os boatos e em
cada esquina havia uma conspiração. E o Teófilo, dobrando o jornal: vê-se logo
que já chegou o comboio de Lisboa. E alisou as guias do bigode frisado.
Ermelinda
Pacheco, viúva rotunda do juiz Laurentino Pacheco, avançou a alentada figura
pela álea do roseiral da Casa Grande, acenando com o lenço de renda a Mariana
Castro, que a esperava na soleira; ao lado, a criada de peitilho e crista, na
mão, o regador de zinco. Mal terminados os cumprimentos e as queixas pelos
tormentos do calor, ainda não perfeitamente acomodadas banhas e refegos no
canapé de palhinha da sala de estar, Ermelinda desabafou: devia haver uma lei
contra as revoluções!
Chegara
na véspera de Lisboa onde fora visitar uma filha casada com um tenente da
Guarda Republicana. Vira cair dois ministérios, e o genro, de equipamento completo,
a pendurar o sabre à cinta, partindo à conquista da ordem da pátria em perigo.
Vinha assustada. Levava a mão ao cimo do espartilho de barbas de baleia a
sobrar ligeiramente do vestido preto e branco, luto aliviado, suspirava e
semeava o seu apocalipse: não calcula, Mariana. Aquilo, volta não vira,
rebentam os tiros e as bombas. E muda-se de ministro como de camisa. A propósito, o seu cunhado Aníbal sempre
vem agora de férias?
Mariana
fez-se desentendida. A chegada do cunhado de mais uma missão nas colónias interessava,
pelas mais diversas razões, numerosos cidadãos de Vila Velha. Ao toque da
campainha de prata acorreu a criada. Jacinta, serve-nos o chá. E não te
esqueças daqueles bolinhos de noz que fiz hoje de manhã. Ora, dizia a Ermelinda
que por Lisboa vai o diabo à solta... Enquanto Ermelinda Pacheco, contradizendo
a sua pesada silhueta de matrona, passava ligeira e habilmente à moda das capelines com flores da Casa Silveira da
Rua do Carmo, Mariana pensava nas voltas que a vida dá sem que as criaturas precisem
de sair do mesmo lugar. Referia-se o pensamento a si própria, sem poder explicar
porque lhe ocorria, a não ser pela defesa instintiva da tagarelice de Ermelinda,
uma chata. Ali sentada entre a mobília arte nova da sala de estar de um casarão
de vinte quartos, cave, sótão e jardim, obra mandada construir pelo falecido
Saul Castro, seu sogro, no ano da graça de 1902,a
menos de duzentos metros da Pensão Pereira, casa no fundo da qual nascera e se
criara, filha única de Francisco Pereira e de Matilde, que ela perdera ainda em
menina, no tempo das olhadelas furtivas ao balcão do café-restaurante de onde o
pai a queria longe mas que sempre a atraía, sobretudo depois de vislumbrar o bigode
preto do mais velho dos meninos Castro, de seu nome Josué, esguio como um vime,
o longo pescoço emergindo do colarinho de goma fechado com botão de ouro e plastron, como o caule de uma flor
saindo de um vaso». In Álvaro Guerra, Café República, folhetim do mundo vivido em Vila
Velha (1914-1945), Edições O Jornal, Lisboa, 1982/1984, Depósito Legal 5036.
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