sexta-feira, 22 de maio de 2015

A Tia Júlia e o Escrevedor. Mário Vargas Llosa. «Havia programas com certo calibre intelectual, Semelhanças do Passado, Comentários Internacionais, e, inclusivamente, nas emissões frívolas, os Concursos de Perguntas ou o Trampolim para a Fama…»

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«Nesse tempo remoto, eu era muito jovem e vivia com os meus avós numa quinta de paredes brancas da Rua Ocharán, em Miraflores. Estudava em San Marcos, Direito, creio, resignado a mais tarde ganhar a vida com uma profissão liberal, ainda que, no fundo, tivesse gostado mais de chegar a ser um escritor. Tinha um trabalho de título pomposo, salário modesto, apropriações ilícitas e horário elástico: director de Informação da Rádio Pan-Americana. Consistia em recortar as notícias interessantes que apareciam nos jornais e maquilhá-las um pouco para que fossem lidas nos noticiários. A redacção, sob as minhas ordens, era um rapaz de cabelo empastado e amante de catástrofes chamado Pascual. Havia noticiários de hora a hora de um minuto cada, excepto os do meio-dia e das nove, que eram de quinze, mas nós preparávamos vários ao mesmo tempo, de modo que eu andava muito na rua, a tomar cafezinhos na Colmena, às vezes ia as aulas, ou então estava nos escritórios da Rádio Central, mais animados que os do meu trabalho. As duas estações de rádio pertenciam ao mesmo dono e eram vizinhas, na Rua Belén, muito perto da Praça San Martin. Não se pareciam em nada. Pelo contrário, tal como as irmãs de tragédia que nasceram, uma, cheia de graças e, a outra, de defeitos, distinguiam-se pelos contrastes. A Rádio Pan-Americana ocupava o segundo andar e o sótão de um edifício fulgurante, e tinha, no seu pessoal, ambições e programação um certo ar estrangeirizante e snobe, presunção de modernidade, de juventude, de aristocracia. Embora os seus locutores não fossem nativos (teria dito Pedro Camacho) mereciam sê-lo. Passavam muita música, jazz e rock abundantes e um nadinha de clássica, as suas ondas eram as que primeiro difundiam em Lima os últimos êxitos de Nova lorque e da Europa, mas também não desdenhavam da música latino-americana sempre que tivesse um mínimo de sofisticação; a música nacional era admitida com cautela e só a nível da valsa. Havia programas com certo calibre intelectual, Semelhanças do Passado, Comentários Internacionais, e, inclusivamente, nas emissões frívolas, os Concursos de Perguntas ou o Trampolim para a Fama, notava-se um afã em não incorrer em demasiada estupidez ou vulgaridade. Uma prova da sua preocupação cultural era o Serviço de Informação que Pascual e eu alimentávamos, num desvão de madeira construído no terraço, donde era possível avistar as lixeiras e as últimas janelas conventuais dos telhados limenhos. Chegava-se até lá por um elevador cujas portas tinham o costume inquietante de se abrirem antes de tempo.
A Rádio Central, pelo contrário, apertava-se numa velha casa cheia de pátios e caminhos tortuosos, e bastava ouvir os seus locutores desabridos e abusadores da gíria, para reconhecer a sua vocação multitudinária, plebeia e crioulíssima. Ali difundiam-se poucas notícias e ali era rainha e senhora a música peruana, incluindo a andina e não era invulgar os cantores índios dos coliseus participarem nessas emissões abertas ao público que horas antes congregavam multidões às portas do local. As suas ondas também eram estremecidas, com prodigalidade, pela música tropical mexicana, porto-riquenha, e os programas eram simples, inimaginativos, eficazes: Pedidos Telefónicos, Serenatas de Aniversários, Mexeriquices do Mundo da Farândola, O Acetato e o Cinema. Mas o seu prato forte, repetido e caudaloso, o que, segundo todas as sondagens lhe assegurava a enorme sintonia, eram as peças radiofónicas.
Passavam meia dúzia por dia, pelo menos, e eu divertia-me muito a espiar os intérpretes enquanto faziam as transmissões: actrizes e actores em declínio, famintos, desastrados, cujas vozes juvenis, acariciadoras, cristalinas diferiam terrivelmente das caras velhas, das bocas amargas e dos olhos cansados. No dia em que a televisão se instalar no Peru, não terão outro caminho senão o suicídio, prognosticava Genaro-filho, apontando-os através dos vidros do estúdio, onde, como num grande aquário, de guiões nas mãos, se viam alinhados em volta do microfone, dispostos a começar o capítulo vinte e quatro de A Família Alvear. E, com efeito, que decepção sentiriam as donas de casa que se enterneciam com a voz de Luciano Pando se tivessem visto o seu corpo disforme e o seu olhar estrábico, e que decepção para os reformados a quem o cadenciado sussurro de Josefina Sánchez despertava recordações, se tivessem conhecido a sua papada, o seu bigode, as suas orelhas de abano, as suas varizes. Mas a chegada da televisão ao Peru era ainda remota e o discreto sustento da fauna radio-teatral de momento parecia assegurado. Sempre tivera curiosidade em saber que canetas fabricavam esses folhetins que entretinham as tardes da minha avó, essas histórias que costumava ouvir por acaso em casa da minha tia Laura, da minha tia Olga, da minha tia Gaby ou nas casas das minhas numerosas primas, quando ia visitá-las (a nossa família era bíblica, miraflorense, muito unida).
Suspeitava que as peças radiofónicas eram importadas, mas surpreendi-me ao saber que os Genaros não as compravam no México nem na Argentina, mas sim em Cuba. Eram produzidas pela CMQ, uma espécie de império radio-televisivo governado por Goar Mestre, um cavalheiro de cabelos prateados, a quem, uma vez, de passagem por Lima, vira passar nos corredores da Rádio Pan-Americana solicitamente escoltado pelos donos e perante o olhar reverencial de toda a gente. Ouvira os locutores, animadores e operadores da rádio falarem tanto da CMQ, para os quais representava algo mítico, o mesmo que a Hollywood da época para os cineastas, que uma vez Javier e eu, enquanto tomávamos café no Bransa, entretivemo-nos um bom bocado a fantasiar sobre esse exército de polígrafos que, lá, na distante Havana de palmeiras, praias paradisíacas, pistoleiros e turistas, nos escritórios com ar condicionado da cidadela de Goar Mestre, tinham de produzir, oito horas por dia, em silenciosas máquinas de escrever, essa torrente de adultérios, suicídios, paixões, encontros, heranças, devoções, casualidades e crimes que, partindo da ilha antilhana, se espairecia pela América Latina, para, cristalizada nas vozes dos Lucianos Pandos e das Josefinas Sánchez, iludir as tardes das avós, tias, primas e reformados de cada país». In Mário Vargas Llosa, A Tia Júlia e o Escrevedor, 1977, 1988, tradução de Cristina Rodríguez, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-846-123-866-8.

Cortesia PQuixote/JDACT