terça-feira, 26 de maio de 2015

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «A rapariga tem por missão elevar-me o moral, o que não é uma tarefa invejável, tanto mais que à superfície não existe nada que indique que o meu moral se encontre por baixo. As conversas banais tornaram-se numa forma salutar de automatismo»

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«(…) No Consulado-Geral senta-se por detrás de uma secretária, constantemente coberta por cartões com os nomes dos colegas. Aquele seu grande corpo, afeito às prolongadas sestas e a Crebillon filho, é a encarnação da preguiça. Os seus lenços cheiram prodigiosamente a alfazem. As mulheres constituem o tema favorito das suas conversas, e pode falar com experiência, a julgar pelo número de visitantes que vejo desfilar pelo pequeno apartamento onde raramente se encontra a mesma cara duas vezes. Para um francês, o amor oferece aqui um grande interesse. Elas agem antes de pensar. E quando chega o momento da dúvida, e o instante torturante do remorso, as coisas avançaram de mais, e ninguém se sente com coragem de voltar para trás. Falta um pouco de finura a essa animalidade, mas é justamente o que me convém. Estou enjoado do amor, e, sobretudo, não quero ouvir falar nessa mania copta e judaica da dissecação e da análise. Quero regressar à minha casa da Normandia sem qualquer compromisso. No Inverno, Pombal vai para férias e eu disponho, só para mim, do pequeno apartamento húmido; faço serão a corrigir os cadernos escolares, ouvindo Hamid ressonar. Neste último ano atingi a saturação. Falta-me a força de vontade para fazer alguma coisa na vida, para melhorar a minha situação à força de trabalho, para escrever e até para fazer amor. Não sei o que me sucede. Experimento pela primeira vez uma indiferença total pela minha própria sobrevivência. Folheio, às vezes, as páginas de um manuscrito ou as velhas provas de algum romance ou de um opúsculo de poemas, mas sem interesse, com uma espécie de enfado; e também com tristeza, como quando se abre um passaporte antigo.
De vez em quando, alguma das numerosas amiguinhas de Georges vem cair na minha rede, quando, na sua ausência, o vêm procurar ao apartamento, e o incidente não tem outras consequências senão agravar por algum tempo o meu taedium vitae. Georges é precavido e generoso neste ponto, e antes de partir (conhecendo a minha pobreza) sucede que muitas vezes paga adiantadamente a uma das sírias da taverna do golfo para vir uma ou outra vez passar uma noite no apartamento na disponibilidade, como ele diz. A rapariga tem por missão elevar-me o moral, o que não é uma tarefa invejável, tanto mais que à superfície não existe nada que indique que o meu moral se encontre por baixo. As conversas banais tornaram-se numa forma salutar de automatismo que persiste ainda por muito tempo depois de toda e qualquer palavra se ter tomado supérflua; e, quando necessário, fazer amor dá-me uma espécie de alívio, visto que nestas paragens é difícil dormir: mas sem paixão, distraidamente. Algumas destas aventuras com pobres criaturas extenuadas, levadas até ao fim por necessidade física, são interessantes, mesmo comoventes, mas perdi o gosto de classificar as minhas emoções, e elas agora não passam, para mim, de silhuetas projectadas numa tela. Só se podem fazer três coisas com uma mulher, disse um dia Clea. Podemos amá-la, sofrer por ela, ou então fazer literatura. Eu passava pela experiência de um fracasso em todos estes domínios do sentimento.
Se falo em tudo isto, é simplesmente para mostrar em que espécie humana Melissa ia tentar insuflar a vida. E ela não podia ligeiramente acrescentar um fardo à sua vida, atormentada pela doença e desprovida de alegria. Necessitava de muita coragem para se interessar por mim no estado em que se encontrava. Era talvez o fruto do seu próprio desespero, porque, tal como eu, também tinha tocado o fundo da desgraça. Tínhamos ambos falhado. Durante semanas, o velho peleiro seguiu-me pelas ruas, armado com uma pistola que fazia uma saliência no bolso do sobretudo. Era consolador saber por um dos amigos de Melissa que a pistola estava descarregada, mas, de qualquer maneira, era alarmante Ser perseguido por este velho. Devemos ter-nos fuzilado em imaginação em cada esquina da cidade. Da minha parte, não tolerava aquela face grosseira, inchada, com os olhos assentando sobre pesadas bolsas acastanhadas, luzentes de gordura, nem podia, tão-pouco, suportar a ideia da sua intimidade vulgar e bestial com a rapariga. aquelas mãos curtas e pesadas, húmidas de suor cobertas de cerdas negras e ásperas como as de um javali! Esta situação durou por algum tempo, e, de repente, um sentimento extraordinário de intimidade pareceu começar a desenvolver-se em nós. Cumprimentávamo-nos e sorríamos quando nos encontrávamos. Um dia, calhou sentarmo-nos num bar, lado a lado, durante cerca de meia hora; ardíamos por falar, mas nenhum de nós tinha coragem de dar o primeiro passo. O nosso único tema de interesse comum era Melissa. Ao partir, vi-o num dos compridos espelhos que forravam as paredes, de cabeça baixa e olhar perdido dentro do copo. Havia na sua atitude alguma coisa que me despertou a atenção, o ar embaraçado de uma foca amestrada que tenta imitar emoções humanas e, pela primeira vez, compreendi que ele amava Melissa tanto quanto eu próprio. Tive dó da sua fealdade e da vazia e dolorosa incompreensão com que afrontava emoções tão novas para ele: o ciúme e a falta de uma amante adorada». In Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-568-496-2.

Cortesia de Ulisseia/JDACT