De
Jerusalém à margem esquerda do Guadiana
«Por alturas de 1278, em data próxima da conclusão das
obras de construção do novo edifício da igreja de Vera Cruz de Marmelar, situado
nas imediações da vila alentejana de Portel, o freire hospitalário Afonso
Peres Farinha, então com perto de 60 anos de idade, ordenava a
colocação de uma lápide numa das paredes daquele templo. Na longa inscrição que
ostentava e que o próprio mandara gravar, recordava-se, para a posteridade, não
apenas o seu papel como fundador dessa igreja, mas também alguns dos momentos
mais significativos da sua vida atribulada e plena de aventuras, boa parte das
quais vividas ao serviço da Ordem do Hospital. As origens desta Ordem Militar
remontam aos finais do século XI, embora a sua existência enquanto organização
seja apenas datável de 1113, ano em
que recebe a protecção da Santa Sé através da bula Piae Postulatio Voluntatis,
de Pascoal II. Contudo, nesta altura, a Ordem possuía ainda uma faceta
exclusivamente assistencial, dedicando-se sobretudo à prestação de cuidados
sanitários aos peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, vindo a adquirir a sua
vertente militar apenas alguns anos depois. De facto, a circunstância de ter
iniciado a construção, em 1128, do
castelo de Calansue e o facto
de ter sido encarregada pelo rei de Jerusalém, em 1136 ou 1137, da defesa
do castelo de Bethgibelin, no sul
da Palestina, tal como a referência à existência, em 1126, ao condestável da Ordem, afiguram-se como sinais
indesmentíveis de que, a partir de meados da década de 1120, possuía já um elevado grau de militarização.
Os
Hospitalários fazem a sua entrada na Península Ibérica através do reino de
Aragão, a partir de onde iniciam a sua expansão em direcção a ocidente,
chegando a Portugal, tudo o indica, entre 1125 e 1128, embora a primeira referência segura e inequívoca à sua
presença date apenas de 1132. Mas ao
contrário da sua congénere do Templo, a Ordem do Hospital foi praticamente
esquecida pela monarquia portuguesa até ao reinado de Sancho I, muito
provavelmente porque, nos teatros de operações ocidentais, ao contrário do que
sucedera na Palestina, o seu processo de militarização foi consideravelmente
mais lento, não se encontrando concluído antes de finais do século XII. É,
precisamente nessa altura que os Hospitalários começam a desempenhar, em
território português, as primeiras missões de natureza bélica: em 1189, participando no cerco de Silves
e, em 1194, através do início das obras
de edificação do castelo de Belver, finalizadas pouco antes de 1210. Localizado dentro dos limites da
herdade de Guidintesta, entregue por Sancho I precisamente com a
condição de aí ser erguida uma fortaleza, convertia-se assim no primeiro de um
vasto conjunto de castelos erguidos e/ou defendidos pela Ordem. Não são
abundantes as informações respeitantes ao papel desempenhado pelos
Hospitalários durante os primeiros anos do século XIII na progressão das forças
cristãs para sul, sabendo-se apenas que em 1217
integraram a hoste mobilizada para o cerco a Alcácer. Ainda assim, é natural
que tenham protagonizado outras acções de índole ofensiva, pois em 1224 recebem de Sancho II, em
recompensa pelos serviços prestados, mas também pelos que haveriam de prestar, o
castelo transmontano de Algoso, implantado também numa outra zona de grande
importância estratégica, a da fronteira leonesa. A Ordem edifica ainda uma nova
fortificação no Crato, numa região doada também pel'O Capelo, em Março de 1232,
e que estaria concluída, tudo o indica, antes de 1248. Esta doação, vizinha da herdade de Guidintesta,
alargava, assim, o senhorio beirão da Ordem do Hospital para sul do Tejo,
região para onde havia já começado a estender os seus domínios, a partir de 1226, através da conquista dos castelos
e vilas de Mourão, Moura e Serpa, na margem esquerda do Guadiana,
precisamente onde, alguns anos mais tarde, iremos encontrar Afonso Peres
Farinha.
Um
escudo e uma lança
A
fazer fé na lápide a que atrás nos referimos, Afonso Peres terá nascido, em altura próxima de 1218, no seio de uma família nobre de
cavaleiros oriunda da zona de Coimbra. Segundo o Livro de Linhagens do conde D.
Pedro, era bisneto de Gonçalo Dias Góis, O Cid, alcaide de Coimbra em 1129-1148 e participante na Batalha
de Ourique, neto de Salvador Gonçalves e um dos muitos filhos de Pedro
Salvadores Góis e de Maria Nunes Esposade. Com boa parte do património familiar
concentrado precisamente em Góis, na região de Coimbra, foi aos bens que
possuíam na povoação de Farinha Podre que alguns dos filhos de Pedro
Salvadores e de Maria Nunes, Vasco Peres, Afonso Peres, João Peres e Teresa
Peres, foram buscar o apelido Farinha. Aliás, é mesmo possível que aí tenham
nascido, ao contrário dos restantes, Sancha Peres, Maria Peres, Elvira Peres,
Teresa Peres, Urraca Peres, Margarida Peres e Estêvão Peres, que optariam por
manter o apelido de Góis». In Miguel Gomes Martins, Guerreiros
Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-486-4.
Cortesia
Esfera dos Livros/JDACT