Em
busca do Si
«(…)
Se, nesta altura, começarem a ficar preocupados, pensando que estou prestes a
cair na armadilha do homúnculo,
deixem-me dizer imediata e veementemente que nada devem recear. O modelo-do-corpo-no-cérebro a que me
refiro em nada se parece com o rígido homúnculo, essa criatura problemática que
habita os antiquados manuais de neurologia. Nada neste modelo se assemelha a
uma pequena pessoa escondida dentro de uma grande. O modelo nada percebe e nada conhece. Não fala nem produz consciência. Em vez disso, o modelo é
um conjunto de dispositivos cerebrais cuja principal tarefa é a gestão automatizada
da vida do organismo. Como veremos mais adiante, a gestão da vida é conseguida
através de uma variedade de acções reguladoras, predeterminadas de forma inata:
secreção de substâncias químicas, tais como as hormonas, bem como movimentos eficazes
nas vísceras e nos sectores musculo-esqueléticos do corpo. O desenrolar destas
acções depende da informação fornecida pelos mapas neurais que assinalam, a
cada momento, o estado dos diversos departamentos do organismo. Acima de tudo,
nem os dispositivos de regulação vital nem os seus mapas corporais são os
geradores de consciência, embora a sua presença seja indispensável para os
mecanismos que produzem a consciência nuclear. Esta é a questão-chave, no jogo
da consciência, o organismo é representado no cérebro, de forma abundante e com
diversas facetas, e essa representação está ligada à manutenção da vida. Se
esta minha ideia estiver correcta, a vida e a consciência estão indelevelmente
entrelaçadas.
Para
que serve a Consciência?
Para
os leitores que por acaso se surpreendam com a ligação entre vida e
consciência, gostaria de acrescentar o seguinte: a sobrevivência depende de
encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de
situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade
de acção, organismos como os nossos não sobreviveriam, uma vez que não encontrariam
as fontes de energia necessárias à renovação da estrutura do organismo e à
manutenção da vida e não poderiam evitar os perigos presentes no ambiente.
Porém, as acções não nos levariam muito longe se não fossem orientadas por
imagens. As boas acções precisam da companhia de boas imagens. As imagens
permitem-nos escolher entre repertórios de acção anteriormente disponíveis e
optimizar a execução da acção escolhida. De forma mais ou menos deliberada ou
mais ou menos automática, conseguimos rever mentalmente as imagens que representam
as diferentes opções de acção, os diferentes cenários e os diferentes
resultados da acção. Podemos seleccionar as acções mais adequadas e rejeitar as
que o não são. As imagens também nos permitem inventar novas acções aplicáveis
a novas situações e conceber planos para acções futuras.
A
capacidade de transformar e combinar imagens de acções e cenários é a fonte de
toda a criatividade. Se as acções estão na origem da sobrevivência e se o seu
poder está ligado à disponibilidade de imagens orientadoras, é bem plausível
que um dispositivo capaz de maximizar a manipulação efectiva de imagens ao
serviço dos interesses de um determinado organismo tivesse conferido uma enorme
vantagem aos organismos que o possuíssem e tivesse provavelmente prevalecido na
evolução. A consciência é, precisamente, esse dispositivo. A novidade pioneira
trazida pela consciência foi a possibilidade de ligar o santuário íntimo da
regulação da vida à capacidade de manipular imagens. Dito por outras palavras,
foi a possibilidade de o sistema de regulação vital, que se encontra situado
nas profundezas do cérebro, em regiões como o tronco cerebral e o hipotálamo,
se relacionar com o processamento de imagens que representam as coisas e os
acontecimentos que existem dentro e fora do organismo. Esta novidade tornou-se
numa vantagem porque a sobrevivência num meio ambiente complexo, isto é, a
gestão eficiente da regulação da vida, depende de um curso de acção correcto
que pode ser melhorado através de previsão e planeamento duas funções que, por
seu turno, dependem da manipulação de imagens na mente. A consciência permitiu
a ligação entre a regulação da vida interior e a manipulação das imagens». In António Damásio, O Sentimento de
Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações
Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.
Cortesia de
PEA/JDACT