domingo, 31 de maio de 2015

Uma Pausa para a Luz no 31. O Sentimento do Si. António Damásio. «… a sobrevivência depende de encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade de acção…»

wikipedia e jdact

Em busca do Si
«(…) Se, nesta altura, começarem a ficar preocupados, pensando que estou prestes a cair na armadilha do homúnculo, deixem-me dizer imediata e veementemente que nada devem recear. O modelo-do-corpo-no-cérebro a que me refiro em nada se parece com o rígido homúnculo, essa criatura problemática que habita os antiquados manuais de neurologia. Nada neste modelo se assemelha a uma pequena pessoa escondida dentro de uma grande. O modelo nada percebe e nada conhece. Não fala nem produz consciência. Em vez disso, o modelo é um conjunto de dispositivos cerebrais cuja principal tarefa é a gestão automatizada da vida do organismo. Como veremos mais adiante, a gestão da vida é conseguida através de uma variedade de acções reguladoras, predeterminadas de forma inata: secreção de substâncias químicas, tais como as hormonas, bem como movimentos eficazes nas vísceras e nos sectores musculo-esqueléticos do corpo. O desenrolar destas acções depende da informação fornecida pelos mapas neurais que assinalam, a cada momento, o estado dos diversos departamentos do organismo. Acima de tudo, nem os dispositivos de regulação vital nem os seus mapas corporais são os geradores de consciência, embora a sua presença seja indispensável para os mecanismos que produzem a consciência nuclear. Esta é a questão-chave, no jogo da consciência, o organismo é representado no cérebro, de forma abundante e com diversas facetas, e essa representação está ligada à manutenção da vida. Se esta minha ideia estiver correcta, a vida e a consciência estão indelevelmente entrelaçadas.

Para que serve a Consciência?
Para os leitores que por acaso se surpreendam com a ligação entre vida e consciência, gostaria de acrescentar o seguinte: a sobrevivência depende de encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade de acção, organismos como os nossos não sobreviveriam, uma vez que não encontrariam as fontes de energia necessárias à renovação da estrutura do organismo e à manutenção da vida e não poderiam evitar os perigos presentes no ambiente. Porém, as acções não nos levariam muito longe se não fossem orientadas por imagens. As boas acções precisam da companhia de boas imagens. As imagens permitem-nos escolher entre repertórios de acção anteriormente disponíveis e optimizar a execução da acção escolhida. De forma mais ou menos deliberada ou mais ou menos automática, conseguimos rever mentalmente as imagens que representam as diferentes opções de acção, os diferentes cenários e os diferentes resultados da acção. Podemos seleccionar as acções mais adequadas e rejeitar as que o não são. As imagens também nos permitem inventar novas acções aplicáveis a novas situações e conceber planos para acções futuras.
A capacidade de transformar e combinar imagens de acções e cenários é a fonte de toda a criatividade. Se as acções estão na origem da sobrevivência e se o seu poder está ligado à disponibilidade de imagens orientadoras, é bem plausível que um dispositivo capaz de maximizar a manipulação efectiva de imagens ao serviço dos interesses de um determinado organismo tivesse conferido uma enorme vantagem aos organismos que o possuíssem e tivesse provavelmente prevalecido na evolução. A consciência é, precisamente, esse dispositivo. A novidade pioneira trazida pela consciência foi a possibilidade de ligar o santuário íntimo da regulação da vida à capacidade de manipular imagens. Dito por outras palavras, foi a possibilidade de o sistema de regulação vital, que se encontra situado nas profundezas do cérebro, em regiões como o tronco cerebral e o hipotálamo, se relacionar com o processamento de imagens que representam as coisas e os acontecimentos que existem dentro e fora do organismo. Esta novidade tornou-se numa vantagem porque a sobrevivência num meio ambiente complexo, isto é, a gestão eficiente da regulação da vida, depende de um curso de acção correcto que pode ser melhorado através de previsão e planeamento duas funções que, por seu turno, dependem da manipulação de imagens na mente. A consciência permitiu a ligação entre a regulação da vida interior e a manipulação das imagens». In António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.

Cortesia de PEA/JDACT