Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«(…) É neste quadro, que teremos de entender a prova pela harmonia e
pelas maravilhas da natureza, a qual está bem longe de se constituir em prova
puramente física. Assim, vamos vê-lo mais adiante, as chamadas provas físicas,
tal como nos aparecerão comummente designadas nos textos dos nossos teóricos
setecentistas, são, em rigor de termos, provas físico-metafisicas, porque o
Universo é contingente, não apenas na ordem do devir mas, como dissemos, na
ordem da existência: o Deus-relojoeiro não se entende apenas na ordem do fazer
mas na do criar. Um dos aspectos que, neste quadro, importa sublinhar é que a
noção de contingência e a consequente afirmação de uma dependência, não
constitui apenas um factor de negatividade, porque, ao sublinhar a relação que
se estabelece entre as criaturas e a sua Causa, está-se, ao mesmo tempo, a
afirmar, tanto quanto é possível, a dignidade do mundo contingente. Este aspecto
foi particularmente vincado pela filosofia medieval, posterior ao século XII, nomeadamente
pela escolástica tomista pois,como nos diz Comélio Fabro, a relação das
criaturas a Deus, em São Tomás, opera segundo um plano de analogia no sentido em
que, escreve, [...] as perfeições
pertencem a Deus por essência, ao passo que as criaturas possuem-nas somente
por participação [...] a estrutura do ens per participationem apresenta,
no tomismo, o paradoxo da infinita distância de Deus, esse per essentiam, juntamente
com a pertença ou absoluta dependência da criatura relativamente a Deus, a dependentia
Deum. Existe, pois, uma distância infinita das criaturas a Deus, mas
não existe nenhuma distância de Deus às criaturas. Todas as criaturas são
contingentes, e a relação destas à causa simultaneamente criadora, eficiente e
final far-se-á no plano preciso da participação e da analogia.
É este aprofundar do tema platónico da participação, enriquecido pela profunda apetência racional do
tomismo, que permite actualizar essa possibilidade de, pela natureza, aceder a
Deus, num plano em que o mundo contingente se não deprecia, mas, pelo
contrário, surge plenamente valorizado na sua legalidade própria, ao exigir processos
de investigação racional. Evidentemente, não será demais sublinhá-lo, os
processos racionais referidos estão ainda longe de ser os da ciência moderna,
mas o que importa relevar é essa valorização, para um determinado modelo de
racionalidade, da legalidade própria da natureza, a valorização de uma imanência
que, no entanto, se não resolve num imanentismo, antes, pelo contrário, a concilia
com um apelo profundo de transcendência, sentido este último como uma vocação
essencial do espírito, naquele sentido que E. Gilson considerava poder dar
corpo à atitude do filósofo cristão: o
mundo físico em que vivemos, oferece ao pensamento do cristão uma espécie de
verso do seu próprio fisicismo, uma outra face onde tudo o que, por um lado, se
lê em termos de forças, energias ou leis, se lê, por outro lado, em termos de
participação no ser divino e de analogias.
Desse projecto nos dará conta, já na segunda metade do século XVIII, um
dos autores que, juntamente com Derham e Nieuwentyt, se afirmará como das mais
importantes figuras da física teológica na Europa das luzes. Referimo-nos
ao Espectáculo
da Natureza do abade Pluche. Aí nos reenvia para uma leitura da natureza
que, integrando todas as conquistas da filosofia natural, quebra, no entanto,
os limites do finito e do fragmentário, pela integração da natureza física num
mais vasto edifício, que nos fala de um Deus criador e dos seus atributos. Este
texto resume, de forma tão sintética quanto clara, a atitude de vastas camadas
de intelectuais das Luzes a respeito da natureza, atitude que se nos afigura
dominante em Portugal, embora não exclusiva. É esta concepção da natureza como linguagem, que abre portas à
consideração simbólica e permite assegurar uma modalidade fundamental do acordo
entre Natureza, Homem e Deus, a qual se revela acessível à razão natural, pois,
como escreve de novo o abade Pluche, nessa que foi das mais lidas obras em todo
o século XVIII europeu. A oposição
entre razão e religião não faz sentido para Pluche, não são domínios exteriores
um ao outro, como o não são para Vemei, Genovesi, Derham, Cenáculo ou
Teodoro de Almeida». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no
século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.
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