«Até
àquele dia de Junho de 1914 nunca fora pronunciado, em Vila Velha e no seu
Concelho, o nome de Sarajevo. Em todo o país, aliás, os dedos da mão chegavam
para contar aqueles que sabiam da existência de Sarajevo e onde era. Mesmo
assim, Teófilo Oliveira, notário, e autoproclamada testemunha omnisciente da
historia contemporânea e dos meandros da heráldica dos duques de Vila Velha,
não resistiu a situar, com inesperado acerto, Sarajevo nos Balcãs, ao profetizar
em pleno Café República graves consequências do assassinato do
arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria. O primeiro grande massacre do século
ia começar mas, em Vila Velha e em muitos outros lugares, ninguém sabia de
nada. Nem sequer o douto notário, pessoa de erudição e experiência, expoente da
gente honrada, tira-teimas de questões de águas e limites de pequenas propriedades
bem como dos conflitos internacionais das potências de todos os tamanhos. Porém,
nem no Verão de 14 nem depois, se pronunciou correctamente, em Vila Velha, o
nome da cidade da Bosnia-Herzegovina, Saraievo, mas antes se acentuava o
jota, como o Teófilo, naquela fatídica tarde de Junho, à mesa da tertúlia do Café
República. Algumas das testemunhas desse momento histórico viriam a ter
razões pessoais para não mais o esquecer, embora então saboreassem, com ripanço
e segurança, o cafezinho da tarde, absolutamente incapazes de prever as voltas
dramáticas que o tempo tramava nas suas costas.
De
resto, tudo chegava tarde a Vila Velha. As notícias, também. Desde o momento em
que Gavrilo Prinzip desfechou a pistola nos peitos nobres do herdeiro do Imperio
Austro-Húngaro e da duquesa Solia até que o Teófilo Oliveira desdobrasse, com
idêntico dramatismo, a gazeta chegada da capital, à mesa do Café
República, decorreram três longos dias durante os quais os mortos se
contaram apenas nas fileiras dos nacionalistas sérvios. O telégrafo, desabafou
o notário, o telegrafo e o telefone só servem para mandar recados do ministério
e do partido ao administrador do concelho. Um atraso, um atraso permanente, no
momento em que o progresso está no poder, a monárquica Inglaterra tem sindicatos
livres e se navega no canal do Panamá. Uma no cravo, outra na ferradura, era a receita
política para a manutenção do prestígio do notário de Vila Velha. Embora se
conhecessem os seus dedicados serviços à monarquia apeada em 1910, ninguém contestava a
autodefinição que ele apregoava depois do advento da República: nem monárquico,
nem republicano, homem de bem ao serviço da coisa pública. Quem havia para o contestar?
Como
dizia António Lencastre, o nobre lavrador da Quinta das Toupeiras, quando do
alto da milorde parada à porta do café,
ao sábado à tarde, debitava pródigas e audazes verdades, republicanos, em
Vila Velha, havia três, um barbeiro, um judeu e um estafeta, quando muito
quatro, contando com o Praga de Mãe, que nem é homem nem mulher. Esta
estimativa, relativamente rigorosa em 5 de Outubro de 1910, desactualizara-se progressivamente pela adesão de uma clientela
sequiosa dos empregos e privilégios da nova administração e pelos efeitos da
propaganda revolucionária cujos ecos chegavam da capital, nas páginas das
gazetas, nas narrativas dos viajantes e na acção itinerante dos vultos míticos
do Partido Republicano que, no Verão de 1911,
levaram a República a Vila Velha com banda de música, foguetes e morteiros,
grinaldas, festões, bandeirolas e discursos ao bom povo proferidos na varanda
do Município. A iniciativa arregimentara trinta ardorosos aderentes, entre os
quais o anterior administrador do Concelho, monárquico mas homem honrado, que
viu recompensada a sua competência com a solene recondução no cargo.
Quanto
aos perigosos carbonários a que se referia António Lencastre, repimpado no
assento da milorde, haveria que
contar com o radicalismo verbal do barbeiro Zacarias Gorjão entre a barba a um talassa, a massagem a um adesivo, o corte francês a um jovem oficial
de finanças; com os boatos do Fonseca estafeta, colhidos durante as suas
deslocações semanais nas esquinas, lojas e repartições da capital; com a fama
de Aníbal Castro, no período de férias entre cada quinquénio de missão nas
colónias longínquas das Áfricas e Ásias. Quanto ao Praga de Mãe, pintor
de tabuletas com veleidades artísticas, a quem o fidalgo da Quinta das
Toupeiras desdenhosamente se referia como não sendo nem homem nem mulher, viu recusarem-lhe
a carta do Partido por causa do seu ar efeminado e dos rumores, nunca confirmados,
que intimamente se ligavam ao único nome que se lhe conhecia, Praga de Mãe,
por esta, vendedeira de hortaliças e legumes, viúva desembaraçada com lugar
estabelecido na praça do mercado, contemplar, segundo a lenda local, as
traquinices do filho com a ameaça constante e fatal: está quieto, menino, se
não levas no cu! Portanto, nada mais natural em Vila Velha do que o cepticismo
erudito do Teófilo, exercitado à mesa do Café República, sobre os efeitos
distantes do atentado de Sarajevo e das ainda mais distantes consequências das
últimas bombas rebentadas na capital, entre uma greve da Tabaqueira e uma
surtida de dois pelotões de Caçadores 5 comandados por um oficial nostálgico.
Como centro do mundo, Vila Velha era um lugar relativamente abrigado das
contingências e caprichos da Historia». In Álvaro Guerra, Café República, folhetim
do mundo vivido em Vila Velha (1914-1945), Edições O Jornal, Lisboa, 1982/1984,
Depósito Legal 5036.
Cortesia
de O Jornal/JDACT