De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…)
Foi nesse clima que cresci, foi sob o jugo dessa ordem social que os meus pais
me passaram aqueles ensinamentos. Cedo aprendi que o cristianismo era a peneira
que cobria os raios ardentes da nossa fé, ao mesmo tempo que nos impelia rumo
aos esconderijos no submundo secreto da nossa casa. Todas as noites,
invariavelmente, percorríamos aquele caminho até à gruta e, sentados no tapete
de orações, fazíamos um círculo. O meu pai recorria à geniza, seleccionava o texto sagrado, segundo o seu
discernimento, e falava dele para apreendermos as leis de Moisés e as coisas
mais puras que podem existir entre os seres humanos. Eu sentia as preocupações
do meu pai e o cuidado especial que ele me dedicava nos primeiros tempos. Os
meus passos eram meticulosamente seguidos e quase que não podia ter contacto
com outras pessoas fora do nosso seio familiar. Mais tarde, fez-me esse e
outras revelações, cada vez que tocava nos livros sagrados tinha a sensação de
que poderia estar prestes a arder na fogueira, mas como a força da fé era maior
do que tudo isso, logo prosseguia. Apesar da minha tenra idade, percebi que
havia dois lados. No começo fazia-me uma certa confusão, por que razão haveria
de estar em ambos...?
Os
pecados dos cristãos-novos estão entregues aos bispos e às cortes da sua
igreja. Não os atices Raquel... Já tens corpo de mulher, mas o que, de facto,
te faz falta é maturidade. Raquel, Raquel, Raquel... Ganha juízo, miúda. Tu não
vais contribuir para a ruína da verdadeira nobreza através da infiltração via
casamento. Tem sido letal para eles a mistura de sangue verdadeiro com o de
judeus e conversos. A plebe está de olho e, por esse andar, serão empurrados
rumo ao desprezo. Ainda hoje tremes quando te lembras das mãos dele a deslizar,
embora de forma efémera, entre os teus belíssimos seios, diante de todos, mas
sem que ninguém ousasse levantar suspeitas sobre as suas boas intenções.
Acredita que ele também guarda na memória aquilo que sentiu. Se fosse o acto
pensado, tinha deixado um pouco mais a mão, para sentir os teus mamilos. Ele
lamenta e deixa-se assombrar pela sensação fugidia, algo malandra, que lhe
escapou na ponta dos dedos. Raquel, Raquel... Deverias interiorizar o pânico
que sentiste quando aquela osga caiu tecto abaixo e aterrou precisamente no vão
do teu decote e fazer dele, do pânico, o motivo para apagar a doce memória de
sentir a mão de Manolo Ortiz, numa tentativa desesperada de te ajudar a
livrares-te do pobre bicho que, tal como tu, estava em
pânico.
Raquel...
Ele, apesar de ser da tua idade, é filho de um nobre, membro da dinastia Ortiz,
com grandes ligações ao clero e um dos maiores defensores da Inquisição (maldita) que existe no
reino. O que o liga aos teus vizinhos, descendentes do rabino Isaías, é o
interesse pelo capital, mas ele condena seriamente a infiltração de sangue
converso pela nobreza acima. Por outro lado, não tens o mesmo estatuto, a tua
família não tem assim tanto capital, algo que poderia fazer com que eles
fechassem os olhos. O jogo começou e ficaste assinalada; danças e rodopias; espanta
os teus males e ele deleita-se; não perde ume oportunidade de estar perto de
ti. Está a gostar, estás a gostar... Vocês estão a gostar. O carrancudo, se
souber, tratará logo de desaprovar porque sabe de onde vem o perigo. Mas és
linda e irresistível e ele insiste, mesmo sabendo que uma nega também virá do
lado dos Ortiz. As coisas aquecem, ganham interesse, fazem joguitos de pares proibidos.
Perderiam vocês o interesse se não fosse proibido? Vá-se lá saber... Ai, não
percebes a desaprovação de parte a parte? Então repara bem, Raquel». In
Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e
Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN
978-989-689-450-4.
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de Colibri/JDACT