Universos
Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«(…)
. É a recursividade da comunicação
humana, já enfatizada por Grice (citado por Tomasello), que transforma tudo:
- transforma ajuda e partilha em expectativas mútuas ou até normas de cooperação;
- transforma a compreensão de objectivos e intenções em objectivos e intenções da comunicação (Grice);
- transforma o raciocínio prático em raciocínio cooperativo;
- transforma sinais imitados em convenções bidireccionais partilhadas.
O valor acrescentado tanto no apontar como
no mimar vem da referida infraestrutura psicológica oculta na comunicação
humana: a infraestrutura de intencionalidade partilhada, isto é, o modelo cooperativo
de comunicação. Eis o ponto em que insiste Tomasello. Outros primatas não
estruturam a sua comunicação da mesma forma com intenções conjuntas, atenção conjunta,
motivos cooperativos mutuamente assumidos e convenções comunicativas. Antes se
limitam a tentar predizer ou manipular directamente objectivos, percepções e acções
individuais dos outros. Mas já as crianças começam a estruturar a sua
comunicação gestual cooperativamente mesmo antes da linguagem, e fazem-no em sincronia evolvente (evolucionária) com
a emergência das suas faculdades mais gerais de intencionalidade partilhada,
tal como esta se manifesta noutras actividades colaborativas. Em suma: a
aquisição de convenções linguísticas depende crucialmente de faculdades e motivações
sociocognitivas desenvolvidas originariamente na comunicação gestual (gestos de
apontar e icónicos). O propósito da minha indagação é reflectir sobre a
comunicação musical a partir destes resultados a que chegou Tomasello, seguindo
um percurso crítico que passa pelos modelos tipificados por Christian Kaden na
sua Musiksoziologie (Sociologia
da Música), publicada em 1984.
Kaden identificou três níveis relevantes respectivamente de representação e de
descodificação na comunicação musical:
- o nível da transformação do medium acústico;
- o nível da representação do todo pela parte através das transformações operadas no medium;
- o nível da representação por substituição, isto é, o nível da convencialização dessas transformações do medium, conferindo-lhes a função de signos acústicos.
Estes
três níveis coexistem na comunicação falada:
- sem alterações do medium acústico produzidas e percebidas pelos interlocutores, as palavras não são pronunciadas nem ouvidas (primeiro nível);
- as palavras, elas próprias, são signos acústicos convencionais, que representam por substituição as coisas que designam (terceiro nível);
- finalmente, o código linguístico assenta numa infraestrutura não linguística de compreensão intencional e de terreno conceptual comum que é, de facto, logicamente primário, e isso leva-nos também ao segundo nível, o da representação do todo pela parte, na medida em que a fala dos interlocutores é indissociável dos seus próprios comportamentos expressivos e do contexto pressuposto (terreno comum) da comunicação.
No
entanto, e como Kaden já pôs em evidência, a hierarquia da relevância destes
três níveis entre si é muito diferente respectivamente na comunicação falada e
na comunicação musical». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a
Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de
Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.
Cortesia
EColibri/JDACT