quarta-feira, 6 de maio de 2015

Pedro Páramo. Juan Rulfo. «Viveu num orfanato até aos 16 anos. A sua infância solitária marcá-lo-ia para toda a vida. Não pode estudar Direito, como desejava…»

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«Era a hora em que as crianças brincam nas ruas de todas as aldeias, enchendo a tarde com os seus gritos, quando até as paredes negras reflectem a luz amarela do Sol. Pelo menos foi o que ontem vi em Sayula, a esta mesma hora. E vi também o voo das pombas rompendo o ar quieto, sacudindo as asas como se se desprendessem do dia. Voavam e caíam sobre os telhados, ao mesmo tempo que os gritos das crianças revolteavam e pareciam tingir-se de azul no céu do entardecer. Agora estava ali, naquela aldeia sem barulho. Ouvia cair as minhas pisadas sobre as pedras redondas de que as ruas estavam empedradas. As minhas pisadas ocas, repetindo o seu som no eco das paredes tingidas pelo Sol do entardecer. A essa hora, fui caminhando pela rua principal. Comtemplei as casas vazias e as portas desengonçadas, cheias de erva. Como me disse aquele tipo que se chamava esta erva? A capitana (hera das zonas áridas), meu senhor. Uma praga que só espera que as pessoas se vão para invadir as casas. Há-de vê-las. Ao passar no embocamento de uma rua, vi uma senhora envolta num xaile e que desapareceu como se não existisse. Depois os meus passos voltaram a mover-se e os meus olhos continuaram a assomar-se ao buraco das portas, até que novamente a mulher do xaile se atravessou à minha frente. Boa noite!, disse-me. Seguia-a com o olhar. Gritei-lhe. Onde vive a dona Eduviges? Ela apontou com o dedo: Além, naquela casa junto à ponte. Dei-me conta de que a sua voz era feita de fibras humanas, que a sua boca tinha dentes e uma língua que se prendia e desprendia ao falar, e que os seus olhos eram como os olhos das pessoas que vivem na terra.
Tinha escurecido. Voltou a dar-me as boas-noites. E apesar de não haver crianças a brincar, nem pombas, nem telhados azuis, senti que a aldeia vivia. E se eu escutava apenas o silêncio, era porque ainda não estava acostumado ao silêncio, talvez porque a minha cabeça vinha repleta de ruídos e de vozes. De vozes, sim. E aqui, onde o ar era escasso, ouviam-se melhor. Ficavam dentro de uma pessoa, pesadas. Lembrei-me de que minha mãe me havia dito: lá, ouvir-me-ás melhor. Estarei mais perto de ti. Parecer-te-á mais próxima a voz das minhas recordações que a da minha morte, se é que alguma vez a morte teve alguma voz. Minha mãe..., a viva. Gostava de lhe ter dito: enganaste-te na morada. Deste-me uma direcção errada. Mandaste-me ao deus-dará, a uma aldeia solitária, procurar alguém que não existe. Cheguei à casa da ponte orientando-me pelo barulho da água do rio. Bati à porta, mas em vão. A minha mão agitou-se no ar como se este a tivesse aberto.
Então é por isso que a sua voz era tão fraca, como se tivesse tido de atravessar uma enorme distância para chegar até aqui. Agora percebo. E há quanto tempo morreu? Já lá vão sete dias. Coitada. Deve ter-se sentido abandonada. Prometemos uma à outra morrer juntas, ir as duas para mutuamente nos animarmos ao longo da viagem, para o caso de ser preciso, para o caso de depararmos com alguma dificuldade. Éramos muito amigas. Nunca lhe falou de mim? Não, nunca. É estranho. É claro que nessa altura éramos umas miúdas. Ela tinha acabado de casar. Mas gostávamos muito uma da outra. A tua mãe era tão maravilhosa, tão, digamos, tão terna, que dava gosto gostar dela. Dava gosto gostar dela. Adiantou-se-me, não é verdade? Mas fica a saber que a hei-de apanhar. Só eu compreendo quão longe está de nós o céu, mas também sei como cortar caminho. A questão está em morrer, se a Deus aprouver, quando uma pessoa quer e não quando Ele dispõe. Ou, se preferires, em forçá-lo a dispor antes de tempo. Desculpa tratar-te por tu, mas faço-o porque te considero como meu filho. Sim, muitas vezes disse: o filho de Dolores deveria ter sido meu. Mais tarde, dir-te-ei porquê. Agora quero apenas dizer-te que hei-de apanhar a tua mãe em algum dos caminhos da eternidade». In Juan Rulfo, Pedro Páramo, Edições 70, tradução de António Massano, 1994, ISBN 972-747-037-8.

Cortesia Edições 70/JDACT