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de wikipedia e jdact
Entre
o dinheiro e o Inferno: a usura e o usuário
«A
usura. Que fenómeno oferece, mais do que este, durante sete séculos no
Ocidente, do século XII ao XIX, uma mistura tão explosiva de economia e de
religião, de dinheiro e de salvação, expressão de uma longa Idade Média, em que
os homens novos eram esmagados sob os símbolos antigos, em que a modernidade
trilhava dificilmente um caminho entre os tabus sagrados, em que as astúcias da
história encontravam na repressão exercida pelo poder religioso os instrumentos
do êxito terrestre? A formidável polémica em torno da usura constitui de certo
modo o parto do capitalismo. Quem pensa nesse resíduo, nessa larva do
usurário que é o pawnbroker
dos romances ingleses do século XIX e dos filmes hollywoodianos posteriores
à grande crise de 1929, torna-se incapaz de compreender o protagonista da
sociedade ocidental, essa monstruosa sombra debruçada sobre os progressos da
economia monetária, e as teias sociais e ideológicas que se enredaram em torno
desse Nosferatu do précapitalismo. Vampiro duplamente assustador da sociedade
cristã, pois esse sugador de dinheiro é muitas vezes assimilado ao Judeu
deicida, infanticida e profanador de hóstia.
Num mundo em que o
dinheiro (nummus em
latim, demer em francês)
é Deus, em que o dinheiro é vencedor, o dinheiro é rei, o dinheiro é
soberano (Nummus vincit, nummus
regnat, nummus imperat; em que a avaritia, a cupidez, pecado burguês de quem a usura é
mais ou menos a filha, destrona, na hierarquia dos sete pecados capitais, a superbia, o orgulho, pecado
feudal, o usurário, especialista em empréstimo a juro, torna-se um homem
necessário e detestado, poderoso e frágil. A usura é um dos grandes problemas
do século XIII. Nessa data, a Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendia
desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia
monetária ameaçam os velhos valores cristãos. Um novo sistema económico está
prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de
novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas condenadas desde sempre
pela Igreja. Uma luta encarniçada, quotidiana, assinalada por proibições
repetidas, articuladas a valores e mentalidades, tem por objectivo a
legitimação do lucro lícito que é preciso distinguir da usura ilícita. Como uma
religião que opõe tradicionalmente Deus e o dinheiro, poderia justificar a
riqueza, sobretudo a riqueza mal adquirida?
O Eclesiástico (XXXI, 5) dizia: aquele
que ama o dinheiro não escapa do pecado, o que persegue o lucro ilude-se. E
o Evangelho o acompanhou: Mateus, um publicano, colectar de impostos que abandonou
a sua mesa coberta de dinheiro para seguir Jesus, advertiu: ninguém pode servir
a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou se afeiçoará ao primeiro e
desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e a Mammon. Mammon simboliza, na
literatura rabínica tardia, a riqueza iníqua, o Dinheiro. Lucas também
testemunhara com as mesmas palavras. Mas se os códigos, as leis, os preceitos,
os decretos condenam a usura, Deus se interessa apenas pelos homens, da mesma
forma que o historiador, de quem Marc Bloch dizia que tem os homens como caça.
Consideremos portanto os usurários.
Para
encontrá-los é preciso interrogar outros textos além dos documentos oficiais. A
legislação eclesiástica e laica se interessa com prioridade pela usura, a
prática religiosa dos usurários. Onde encontrar o vestígio dessa prática no
século XIII? Em dois tipos de documentos originários dos géneros antigos que,
na virada do século XII para o XIII, sofreram uma modificação essencial. Os
primeiros agrupam as Sumas ou manuais dos confessores. Durante
a Alta Idade Média, as tarifas de penitência segundo a natureza dos actos
pecaminosos eram consignadas nos penitenciais.
Seguindo o modelo das leis bárbaras, consideravam os actos, não os actores.
Ou melhor, as categorias de actores eram jurídicas: clérigos ou laicos, livres
ou não-livres. Mas do final do século XI ao início do século XIII, a concepção
de pecado e de penitência muda profundamente, se espiritualiza, se interioriza.
De agora em diante, a gravidade do pecado é medida pela intenção do pecador. É
preciso, pois, pesquisar se essa intenção era boa ou má. Essa moral da intenção
é professada por todas as escolas teológicas do século XII, da de Laon às de
Saint-Victor de Paris, de Chartres e de Notre-Dame de Paris, por todos os teólogos
de primeira linha, entretanto antagonistas em muitos outros problemas, Abelardo
e São Bernardo, Gilberto de la Porrée e Pedro Lombardo, Pedro o Cantor e Alain
de Lille. Disso resulta uma mudança profunda na prática da confissão. De colectiva
e pública, excepcional e reservada aos pecados mais graves, a confissão se
torna auricular, da boca para o ouvido, individual e particular, universal e
relativamente frequente. O quarto concílio de Latrão (1215) marca uma grande
data. Torna obrigatória a todos os cristãos, isto é, homens e mulheres, a confissão,
ao menos uma vez por ano, durante a Páscoa. O penitente é obrigado a explicar o
seu pecado em função da sua situação familiar, social, profissional, das
circunstâncias e da sua motivação. O confessor deve levar em conta esses
parâmetros individuais, e tanto quanto a satisfação, isto é, a penitência, deve
procurar sobretudo a confissão do
pecador, recolher a sua contrição. Ele
deve de preferência purificar uma pessoa em vez de castigar um erro». In Jacques
Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial Teorema, 2006, ISBN
978-972-695-683-9.
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