A Idade Média não tinha só uma visão sombria da
vida.
«(…) Segundo Isidoro Sevilha, os mármores são belos
por causa da sua brancura e os metais pela luz que reflectem, e o próprio ar é
belo e é ær, æris porque provém do esplendor
do aurum, do ouro (e, como o ouro, resplendece mal é
tocado pela luz). As pedras preciosas são belas por causa da sua cor, porque a
cor não é mais do que a luz do Sol aprisionada e matéria purificada. Os olhos
são belos quando luminosos e os mais belos são os olhos azuis. Uma das
principais qualidades de um corpo belo é a pele rosada. Nos poetas, este
sentido da cor cintilante está sempre presente: a erva é verde, o sangue é
vermelho, o leite é branco, uma mulher bonita tem, segundo Guinizelli, um rosto
de neve tingido de escarlate (para mais tarde falar das claras, frescas
e doces águas), as visões místicas de Hildegarda de Bingen mostram-nos chamas
rutilantes e a própria beleza do primeiro anjo caído é feita de pedras refulgentes
como um céu estrelado, para que esta inumerável turba de centelhas, resplendecendo
no fulgor de todos os seus ornamentos, encha de luz todo o mundo.
Para fazer penetrar o divino nas suas naves, que de outro modo
seriam escuras, a igreja gótica é rasgada por lâminas de luz que entram pelos
vitrais, e é para acomodar estes corredores de luz que o espaço para as janelas
e rosáceas se alarga, as paredes parecem anular-se num jogo de contrafortes e
arcobotantes, e toda a igreja é construída para facilitar a irrupção da luz
pelas aberturas praticadas na estrutura. Os cronistas das Cruzadas pintam naus
com auriflamas que esvoaçam ao vento e brasões multicoloridos a cintilar ao
sol, o jogo dos raios solares nos elmos, nas couraças, nas pontas das lanças e
as flâmulas e estandartes dos cavaleiros em marcha ou, no caso dos brasões, as
combinações de amarelo com azul, alaranjado com branco ou rosado, rosado com branco ou preto com branco; e as
miniaturas mostram-nos cortejos de damas e cavaleiros vestidos com as mais
esplendorosas cores.
Na
origem desta paixão pela luz estavam ascendências teológicas de remota fonte platónica
e neoplatónica (o Bem como sol das ideias, a simples beleza de uma cor dada por
uma forma que domina a escuridão da matéria, a visão da divindade como lume,
fogo, fonte luminosa). Os teólogos fazem da luz um princípio metafísico e
nestes séculos desenvolve-se, sob influência árabe, a óptica, com as reflexões
sobre as maravilhas do arco-íris e os milagres dos espelhos. Por vezes, estes
espelhos aparecem, liquidamente misteriosos, no terceiro canto da Divina Comédia, que outra coisa
não é senão um poema da luz que de modos vários cintila em todos os céus do paraíso
para terminar nas fulgurações da Rosa Mística e na insuportável visão da Luz Divina.
A gente da Idade Média vivia em ambientes escuros, florestas, câmaras de
castelos, compartimentos estreitos mal iluminados pelas lareiras, mas uma
civilização deve ser julgada não só pelo que é mas também pela maneira como se
representa; de outro modo, teríamos de ver no Renascimento apenas os horrores
do saque de Roma, as guerras, os homicídios e as destruições perpetrados pelos
senhores, ignorando aquilo que hoje dele sabemos ao vê-lo como o século das Fornarine rafaelescas e
das igrejas florentinas.
Em
suma, os chamados tempos das trevas são iluminados pelas fulgurantes imagens de
luz e cor dos apocalipses moçárabes, das miniaturas otonianas, dos sumptuosos livros
dourados ou dos frescos de Lorenzetti, Duccio ou Giotto. E basta ler o Cântico das Criaturas, de
São Francisco de Assis, para descobrir uma Idade Média plena de alegria hílare
e sincera perante um mundo iluminado pelo irmão Sol». In Umberto Eco
(organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
Cortesia
PdQuixote/JDACT