O
castigo maternal
«(…) Quando terá o cardeal
chegado ninguém sabe ao certo, mas poucos terão conseguido reconhecer os traços
do seu rosto. A sua estada terá sido muito breve, entrando em Coimbra num dia e
saindo nessa mesma noite. Posto o encontro com o rei e a renovada recusa em
libertar dona Teresa, quando todos dormiam, percorreu o cardeal as ruas,
excomungando toda a terra e seus habitantes, pondo-se, de seguida, em fuga, a
galope no mesmo cavalo em que chegara, protegido por quatro cavaleiros e levando
ouros, pratas e animais. Cedo na alvorada, o rei foi informado do temível
mistério lançado sobre o País e, dispensando qualquer auxílio da corte ou das
suas tropas, lançou-se ele próprio na perseguição a esse infame cardeal. Poucas
horas depois, conta-se, tê-lo-á alcançado e obrigado a parar, cerca do lugar da
Vimieira, perto de Poiares. Com uma mão agarrou-lhe o colarinho e com a outra
desembainhou a espada, ameaçando cortar a cabeça do clérigo. Os cavaleiros
preveniram-no, então, de que, se o matasse, ninguém em Roma já duvidaria de que
era mesmo herege. Mas Afonso Henriques só aceitou poupar-lhe a vida na condição
de que aquele descomungasse tudo quanto havia antes excomungado e que deixasse
ali todo o ouro, prata e animais que levava. O cardeal tudo aceitou de pronto,
por entre os tremores do frio e do medo. E, por fim, o rei pousou a sua pesada
espada e despiu-se por completo, mostrando todas as feridas e cicatrizes que
lhe marcavam o corpo grande. E disse: cardeal, como eu sou herege, bem se
mostra pelos sinais das minhas feridas: estas em tal peleja, e estas em tal
cidade ou vila que tomei, e todas por serviço de Deus, contra os inimigos da
nossa fé. E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e prata, porque
estou com muita falta deles, e me são necessários para mim e para os meus.
E o cardeal seguiu o seu caminho
para Roma, logo depois de el-rei lhe ter voltado as costas e partido de
regresso a Coimbra. Muitos anos mais tarde, senhor de um reino muito mais
extenso e poderoso, já casado e pai de vários filhos, chegaria um dia trágico
para Afonso Henriques. Não contava o rei com o poder e a estratégia de Fernando
II, rei de Leão, nem que existisse um pacto com o governador da cidade,
cercando-o em Badajoz, entre o castelo e a sua orla, os mouros e os leoneses.
Numa certamente hábil manobra, Afonso ainda conseguiu escapar-se ao cerco, mas,
quando saía a cavalo da cidade, embateu com uma perna no pesado cabo do
ferrolho de uma das portas, mal colhido ao abrir, e caiu violentamente ao chão,
ficando ferido com gravidade. A sua perna, partida no momento do choque, foi
desfeita depois, quando o cavalo, de igual modo ferido, não mais resistiu e
tombou por terra, pelo lado em que ambos sangravam. El-rei não conseguia sequer
erguer-se e nem com ajuda dos seus foi possível transportá-lo. O herói de São
Mamede e Ourique e Santiago e Lisboa, seria feito prisioneiro de Fernando, o
seu genro. Dois meses passados e postos alguns acordos, o rei seria libertado,
mas o povo nunca esqueceria a maldição rogada por dona Teresa. Afonso,
filho, prendeste-me e deserdaste-me: a Deus peço que preso sejais vós, e porque
pusestes minhas pernas em ferros (...), com ferros sejam as vossas quebradas.
De modo algum cessaria a
actividade de Afonso Henriques com este acidente, mas a verdade é que a sua
mobilidade física ficaria, para sempre, muitíssimo afectada e, aos 60 anos,
abandonava o campo de batalha, não mais se voltando a envolver em confrontos
militares, e ponderava, talvez pela primeira vez, no problema de encontrar quem
lhe sucedesse e coroasse, no baptismo do Mediterrâneo, Portugal. Afonso I
pereceu aos 76 anos, a 6 de Dezembro de 1185, em Coimbra, depois de um penoso
calvário de invalidez, tranquilo e, como em todos os outros dias do mundo, sem
qualquer receio do futuro. Jaz o seu corpo de gigante no mesmo túmulo que o de
sua esposa, a rainha dona Mafalda. Entre o dia de sua nascença e o de sua
morte, estendeu-se o reino do Mondego até às primeiras milhas dos Algarves.
Liderou Portugal ao longo de 57 anos, 45 dos quais com o título de rei, naquele
que foi o mais longo reinado da nossa História». In Alexandre Borges e Hugo Rosa,
Histórias Secretas de reis portugueses, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-663-2.
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