«(…) Era, porém, o monarca um
homem esperto mas de pouco saber. Seu pai, o infante Fernando, irmão do rei
Afonso V, e a mãe, dona Beatriz, nunca chegaram a dar ao filho uma educação
ajustada à condição de rei, porque, tal como o próprio, jamais imaginariam que
aos vinte e seis anos de idade ele viesse a ocupar o trono de Portugal. Mas a
ignorância não o deprimia. O que o debilitava era um terrível sentimento de
inveja por não ter a elegância física do amigo Diogo Pacheco ou mesmo de muitos
jovens fidalgos que enxameavam a corte. Ao contrário desses, Manuel I era de estatura
muito abaixo da média, largo de tronco, pernas curtas, coxas grossas e os braços
anormalmente compridos. De pé, aprumado, o limite das mãos chegava-lhe abaixo
dos joelhos. Usava o cabelo pelos ombros e uma franja a tapar-lhe a testa.
Tinha as pálpebras descoloridas, os olhos pequenos, os lábios finos. A barba
era negra e espessa como cordame. Por isto e muito mais poucas eram as donzelas,
e a corte tinha muitas e mui formosas, que não se enojassem com a figura
simiesca de Sua Alteza Real. Mas nem por tal motivo, ou não fosse o homem rei,
lhe faltavam constantes gestos de extrema simpatia ou sedução. Quer dizer: de
provas afectuosas ele não carecia...
Que é feito da jovem que
protegeis?, inquiriu ele, repentinamente. Apanhado de surpresa com o despropósito
da pergunta, àquela hora e naquelas circunstâncias, Diogo Pacheco franziu o
sobrolho e, sem olhar de frente para o soberano, respondeu que já havia partido
para Roma. Com quem foi?, quis saber. Na companhia dos vedores que mandastes à
Cidade Santa para ajudarem os romanos a preparar a cerimónia de recepção à
vossa embaixada. Sem nunca desviar os olhos do cenário delirante à sua frente, Manuel
I cofiou a barba, ajeitou a gola do gibão e voltou a manifestar estranheza pelo
facto de o fidalgo, em tantos anos de relação entre ambos, nunca lhe ter falado
a sério do seu apego à jovem. Porque nunca houve necessidade disso, meu senhor,
justificou. Mas falastes-me de tantas outras... Nos casos em que houve
necessidade para tal. Se ela é tão formosa como me haveis dito, porque nunca a
levastes ao paço?, insistiu o rei, já com um sorriso cínico a marcar-lhe o
rosto. Porque é judia, Alteza...
Naquele instante, quase tão
oportuno quanto sagrado, um coro de vozes troou pela zona baixa da cidade e
pelo Tejo. Atrás de el-rei, alguém gritou Aí vêm elas! Deus seja
louvado!, vociferou o arcebispo, erguendo as mãos ao céu. Amén,
disse o rei. Amén, disseram todos. E todos se persignaram. Ao longe, na
linha do horizonte, onde desde sempre se escondera o Sol e todos os dias
continuava a pôr-se, já se vislumbravam as naus trazidas pelo fraco vento, os
mastros embaciados pela neblina da manhã cinzenta e fria. Ao longo da margem,
no percurso até Belém, a multidão histérica soltava gritos de impaciência,
hurras ao rei, à rainha, ao papa e a Deus. Visivelmente contagiado por aquela
onda de arrebatamento popular jamais sentida, Manuel I lembrou-se de que devia
pronunciar um breve discurso à chegada da esquadra ao cais. No entanto, não só
tinha consciência de que era fraco tribuno, como receava ser traído pela emoção
no eventual caso de perder a vergonha e usar da palavra. De qualquer modo,
tornava-se imperioso que alguém pregasse. Ou ele, ou alguém por ele. No seu
entendimento, Diogo Pacheco estava fora de questão, dado que já tinha a incumbência
de falar perante o papa. Portanto, era preciso encontrar ali mesmo um outro
orador de qualidade idêntica à do seu amigo jurisconsulto ou, talvez melhor
ainda, à de Cataldo Sículo, o sábio italiano chamado, anos antes, a Portugal
pelo seu antecessor, João II, para proferir uma oração de luxo durante o casamento
de seu filho, Afonso, com a filha dos reis católicos de Castela. Desculpando-se
com dores de garganta, o monarca perguntou a Diogo, que se mantinha a seu lado,
quem, na opinião dele, poderia naquelas circunstâncias, em seu nome, dar as
boas-vindas ao capitão da esquadra. O fidalgo rodou a cabeça, olhou à volta
como quem procura um caminho regular, e respondeu que não sendo o próprio rei a
falar, podia ser João Faria ou Garcia Resende.
Mas um é magistrado e o outro
secretário, atalhou o monarca, pouco convencido. Mas são ambos doutores em Leis
e mestres na arte da retórica, defendeu o nobre. Além disso, prosseguiu, nenhum
deles vai discorrer na cúria romana. Após alguns instantes, Manuel mandou
chamar João Faria, que viera de Roma só para assistir à chegada a Lisboa dos
navios regressados do Oriente. Estou aqui para obedecer ao vosso augusto mando,
Alteza, disse o magistrado, ao mesmo tempo que se anunciou, inclinando a cabeça
e flectindo ligeiramente o joelho direito, a cinco passos de distância do imperante.
Uma vez que não estou bem da garganta, gostaria que fôsseis vós a proferir em
meu nome e em nome de Portugal, umas tantas palavras de boas-vindas ao capitão
da esquadra, aqui, à minha frente, quando ele desembarcar da sua nau. João Faria
enrubesceu, voltou a baixar a fronte, e disse que tamanha honra não esperava de
el-rei. E que outros, melhor do que ele, saberiam decerto interpretar o
profundo sentimento de desordem emocional que àquela hora sagrada habitava o
bondoso coração de Sua Alteza Real. Mas a minha preferência recai agora sobre vós,
ilustre vassalo». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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