segunda-feira, 12 de março de 2018

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Nos olhos do estranho surgiu um brilho incandescente. Onde tem ele os livros? O conhecimento tem o seu preço. Quanto está disposto a pagar…»

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«(…) Muito bem. Examinou os marinheiros como se estes fossem demónios. Existem livros a bordo? Imagens? Não, respeitável senhor. Antero acercou-se do comandante e do estranho e fingiu-se horrorizado. Você é... Quero dizer, está a fazer essas perguntas por pertencer à (maldita) Inquisição? Mas isto é terrivelmente desagradável para mim. Como poderia eu saber que trabalha para a Inquisição? Por favor, não quero que pense que tenho uma má opinião a seu respeito, não era minha intenção ofender os costumes do seu país… Deixemos a coisa assim, interrompeu-o o estranho. Você fala como se a sua vida dependesse disso. Teria a gentileza, começou um dos guardas portuários, de nos mostrar a carga, senhor comandante? Talvez o seu contramestre possa fazê-lo, o meu colega poderá acompanhá-lo. Se entretanto pudéssemos ir preenchendo os documentos do navio para a alfândega…? Claro que sim. Vamos até à minha cabina, o comandante afastou-se na companhia do guarda portuário. O inquisidor seguiu-os na direcção da cabina do comandante, enquanto o segundo guarda portuário se dirigiu, na companhia do contramestre, para junto das escotilhas de carga.
O homem de Malagrida é que não! Antero engoliu em seco. Aquele iria exigir ao comandante que lhe mostrasse os pacotes com mercadorias que pertenciam aos membros da tripulação, acabaria por ver o relógio no seu pacote e de imediato aperceber-se-ia de que ali havia algo que não batia certo. Caro senhor inquisidor, disse ele e apressou-se a segui-los. Permite-me que fale consigo um instante? O estranho estacou. Que mais quer? Antero atraiu-o à parte. Revelar-lhe um segredo. É para isso que aqui está, para sondar e revelar a existência de segredos, não é assim? O estranho franziu a testa. Diga.
Foi sobretudo tecidos ingleses que carregámos. Mas também sacas com meias de malha e alguns tapetes de lã. Isso não me diz respeito. A questão é: o que irá o comandante receber a bordo quando a carga tiver sido vendida? De certeza que me vai responder a isso já de seguida. Antero falava em tom de segredo: ainda que, com isto, esteja a falar contra o interesse dele, eu revelo-lho. Ele compra sal de Setúbal ou de Aveiro e transporta-o para o mar Báltico. Lá é bastante procurado, pois precisa-se dele para salgar os arenques. Um negócio astucioso. De seguida leva do Báltico para Inglaterra madeira e pez para a construção naval. Está a fazer-me perder tempo. Espere! Esta é apenas a história que se vê. Na verdade, porém, o comandante é contrabandista! Neste navio não irá descobrir nada, mas eu sei onde encontrará. Isto com certeza que lhe interessa… Vá ter com os guardas portuários e conte-lhes essa história. Contrabandistas é coisa que não me interessa. É mesmo? Ele contrabandeia livros! Daqueles que figuram no Índice dos Livros Proibidos da Inquisição. Vende-os depois às escondidas, e a preços escandalosos, aqui no seu país.
Nos olhos do estranho surgiu um brilho incandescente. Onde tem ele os livros? O conhecimento tem o seu preço. Quanto está disposto a pagar para que eu coloque a minha vida em risco e lhe mostre o esconderijo? Um guarda portuário saiu através da escotilha da cabina do comandante para o exterior. Trazia na mão direita algumas folhas de tabaco, a mão esquerda segurava um relógio, que oscilava, suspenso. Isto pertence-lhe?, perguntou ele, dirigindo-se a Antero. O discípulo de Malagrida olhou para o relógio, depois, fixamente, para o rosto de Antero e disse: tabaco? E quer-me você falar de contrabando? No convés, atrás dele, surgiu o comandante. Trazia uma expressão séria. A fera não reagira ao relógio? Como seria isso possível? Naquele terrível e singular momento, Antero apercebeu-se de tudo. Aquele jogo mortífero ostentava a assinatura de Malagrida. Este tinha enviado os seus esbirros no seu encalço: o comandante Wrightson, que lhe contara uma patranha acerca das colónias e da sua velhice, para o atrair para junto da armadilha». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

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