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Interlúdio: algumas leituras sobre a
passagem que remonta à sua própria época
«(…) Diante das
diversas avaliações produzidas na própria época sobre o fim do Império Romano como
decorrente das invasões de povos não latinos, e também das avaliações sobre o declínio
do Império como decorrentes da corrupção dos costumes, ou mesmo diante da consideração
de pretensos desdobramentos negativos que se julgava que deveriam ser creditados
à adopção do cristianismo como religião oficial do Império, pode-se dizer que
estas interpretações produzidas na própria época não deixam de ser precursoras
de posições historiográficas que se fortaleceriam depois. Os saques de Roma e a
crise do fim do Império, enfim, ofereceram-se como verdadeira arena para
combate intelectual entre defensores do paganismo ou do cristianismo que desejavam
culpar o campo oposto pelos eventos mais alarmantes que iam se produzindo no Império.
As várias posições possíveis encontraram argutos defensores. Já Montesquieu, nas
suas Considerações sobre as causas
da grandeza dos romanos, ilustrava esta pequena arena de ideias que
se organizara na própria época dos acontecimentos mais traumáticos do último
Império Romano mencionando exemplos das três posições clássicas: Orósio,
Salviano e Agostinho. Assim, enquanto Orósio busca situar-se em uma posição
relativizada no debate entre cristianismo e paganismo, escrevendo uma história para provar que em todos os
tempos existiram desgraças tão grandes quanto aquelas de que se queixavam os
pagãos (mas já induzindo a ideia de que a medida da ocorrência das desgraças é
o afastamento em relação a Deus e, em última instância, em relação ao cristianismo),
já Salviano comporia uma obra, intitulada Do governo do mundo, para sustentar a ideia de que os
desregramentos dos cristãos é que haviam atraído as invasões bárbaras.
A posição de Santo
Agostinho foi bem singular. Interessado em livrar o cristianismo de qualquer
acusação ou responsabilidade pela queda do Império, já que à sua época autores
pagãos insinuavam ou argumentavam bastante abertamente em torno da ideia de que
a sujeição de Roma por povos pagãos revelava claros sinais de que o Império
estaria sendo punido pelos deuses por sua adopção do cristianismo, ocupa-se em
trabalhar com a ideia de um declínio que teria sido provocado precisamente pela
corrupção dos costumes pagãos, que de acordo com sua argumentação já viria de
tempos anteriores. A concretização maior desta argumentação, a par de uma
extensa tentativa de demolir a filosofia não cristã e todas as críticas ao
cristianismo, foi a obra intitulada Cidade
de Deus, e nela a tese de um declínio da civilização romana herdada
dos tempos do paganismo encontra um grande resguardo.
As duas posições,
exemplificadas à própria época pelo contraste entre Salviano e Santo Agostinho,
seriam retomadas constantemente em épocas posteriores, a do abate externo (com
ou sem a punição de Deus ou dos deuses) ou a do declínio interno, e a
interpretação de Maquiavel pode ser evocada como um exemplo de análise que
novamente coloca os ataques bárbaros na centralidade do processo. Gibbon, por
outro lado, já escrevendo em 1776, reformula a seu modo a ideia de um declínio
interno, e sugere em certas passagens que o abuso do cristianismo teria
exercido um papel considerável no declínio do Império, embora procure formular
também a hipótese de que o declínio de Roma teria sido consequência natural e
inevitável de sua desmedida grandeza
Novos campos e novas leituras contemporâneas:
economia e sociedade
Conforme vimos até aqui, as posições de
que os fins do Império Romano estão relacionados ora às agressões e penetrações
dos povos não latinos, ora a factores internos, que podiam ir desde aspectos
sociais a religiosos, foram recorrentes num longo período que principia à própria
época dos acontecimentos mais marcantes que anunciaram a queda ou o declínio do
Império Romano. Essas posições, de lado a lado, atingem os séculos XIX e XX com
a célebre querela sobre o assassinato ou a morte natural do Império Romano. Mas
logo abririam espaço para outras proposições, mais tendentes a enxergar a
transformação de um período em outro, do que o fim taxativo de um grande período
da história. Estas novas proposições, naturalmente, são beneficiadas
precisamente pela multiplicação de novos campos históricos, para além da história
política tradicional». In José D’Assunção Barros, Papas,
Imperadores e Hereses na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN
978-853-264-454-1.
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