Cortesia
de wikipedia e jdact
«Não
foi por acaso. Não houve nenhuma parte que tivesse acontecido apenas por acaso.
Apercebi-me disso mais tarde, ainda que essa ideia, no momento em que surgiu,
tenha sido difícil de aceitar, porque eu sempre acreditara firmemente no
livre-arbítrio. A minha vida até então parecera comprovar isso mesmo, tinha
escolhido certos caminhos e eles tinham conduzido a certos fins, todos eles
bons, e conseguia olhar para todos os contratempos menores que enfrentara ao
longo do percurso não como má sorte, mas simplesmente como produtos das minhas
decisões imperfeitas. Se tivesse tido de escolher um credo, teriam sido os
versos corajosos e vibrantes do poeta William Henley: sou o senhor do meu destino; sou o capitão
da minha alma. Por isso, naquela manhã de Inverno, quando
tudo começou, quando entrei pela primeira vez no carro alugado e segui para
norte de Aberdeen, não pensei, nem por uma vez, que pudesse haver a mão de
outra pessoa ao leme. Acreditei sinceramente que a decisão era minha quando me
desviei da estrada principal para a estrada mais pequena, que seguia ao longo
da linha costeira. Talvez não tenha sido uma decisão muito sensata, tendo em
conta que as estradas estavam cobertas pelo que me tinham assegurado ser a neve
mais alta que caíra sobre a Escócia em quarenta anos, e tinham-me advertido de
que poderia correr o risco de encontrar neve acumulada na estrada e sofrer
alguns atrasos. Se tivesse tido mais cuidado e, sobretudo, sabendo que tinha um
prazo a cumprir, deveria ter seguido pela autoestrada mais movimentada, mas o pequeno
letreiro que dizia Estrada Costeira levou-me a mudar de direcção.
O meu pai sempre disse que eu
tinha o mar no sangue. Tinha nascido e sido criada ao lado do mar, nas costas
da Nova Escócia, e nunca consegui resistir ao seu apelo de sereia. Por isso, no
local onde a estrada principal, à saída de Aberdeen, curvava em direcção ao
interior decidi virar antes para a direita, e segui o percurso ao longo da
costa. Não sei que distância tinha percorrido quando avistei pela primeira vez
o castelo arruinado sobre o penhasco, uma linha muralhada de escuridão que
tinha como pano de fundo um céu repleto de nuvens, mas mal o vi fiquei
cativada, conduzindo um pouco mais rápido na esperança de poder alcançá-lo mais
cedo, deixando de prestar qualquer atenção às casas aglomeradas por que
passava, e sentindo alguma desilusão quando a estrada fez uma nova curva
fechada, afastando-se do castelo. Mas então, depois do emaranhado de um bosque,
a estrada fez uma nova curva em sentido contrário, e ele surgiu de repente: umas
ruínas longas e obscuras, de contornos bem delineados sobre os campos cobertos
de neve que se estendiam proibitivamente entre a margem do penhasco e a
estrada.
Avistei mais à frente um parque
de estacionamento, um pequeno terreno plano, com troncos que demarcavam os espaços
para os automóveis e, seguindo um impulso, entrei e parei. Estava vazio. Não
era surpreendente, uma vez que ainda não era sequer meio-dia, o dia estava frio
e ventoso, e não havia motivos para que alguém parasse ali, a não ser que pretendesse
ir ver as ruínas. E só de olhar para o único caminho que parecia levar ao
castelo, um caminho em terra, gelado e profundamente mergulhado na neve, que me
chegaria aos joelhos, pensei que não deveria haver muitas pessoas que parassem
ali naquele dia. Sabia que também eu não deveria parar. Não tinha tempo. Tinha
de estar em Peterhead à uma da tarde. Mas de súbito alguma coisa dentro de mim
sentiu a necessidade de saber exactamente onde estava e, portanto, procurei a
localização no mapa.
Passara os cinco meses anteriores
em França, onde tinha comprado o mapa, e este tinha algumas limitações,
revelando mais preocupação com as estradas e autoestradas do que com as
localidades e ruínas. Estava tão concentrada a olhar para a garatuja da linha
costeira e a tentar descortinar os nomes impressos em letras miúdas que não
reparei no homem até ele passar por mim, caminhando lentamente, de mãos nos
bolsos, com um spaniel
de patas enlameadas imediatamente atrás de si. Parecia um lugar estranho
para alguém andar a passear, ali no meio de nada. A estrada era movimentada e a
neve ao longo das bermas não deixava grande espaço livre para caminhar, mas não
questionei o seu aparecimento. Sempre que podia escolher entre uma pessoa viva
e um mapa, escolhia a pessoa. Portanto, mexi-me rapidamente, de mapa na mão, e
abri a porta do carro, mas o vento salgado que soprava do mar e atravessava os
campos era mais forte do que eu pensava. Roubou-me a voz. Tinha de tentar
novamente. Desculpe… Creio que o spaniel
me ouviu primeiro. Virou-se para mim e depois o homem também se virou e, ao
ver-me, voltou para trás. Era mais jovem do que eu esperava, não muito mais
velho do que eu, talvez tivesse trinta e poucos anos, tinha cabelos escuros,
asperamente chicoteados pelo vento, e uma barba escura, bem aparada, que o
fazia parecer-se ligeiramente com um pirata. O seu jeito de caminhar também demonstrava
um certo ar de superioridade, de confiança. Perguntou-me: posso ajudá-la?» In Susanna
Kearsley, O Segredo de Sophia, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-944-5.
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