«No capítulo 46 da Crónica do conde Duarte Meneses,
depois de cerca de trinta páginas onde se descrevem os episódios que tiveram
lugar durante o cerco muçulmano a Alcácer Ceguer, Gomes Eanes Zurara apresenta
uma lista com os nomes daqueles que se a este cerco uyerom pera seruyr deos e
seu Rey. O cronista realça trinta e três homens que se terão destacado, aí se
encontrando, naturalmente, o illustre e muy famoso caualleyro dom Duarte de
meneses, mas também outros indivíduos pertencentes a linhagens da média e alta
nobreza de corte (Vasconcelos, Melo, Távora, Ataíde, Sousa, Noronha, entre
outros). Depois de arrolados estes nomes, Zurara sublinha que na defesa da praça
também participaram outros nobres homeens e gente, dispensando-se do trabalho
de explicitar a sua identidade por nom causar fastyo. A lista é o corolário de
um ciclo da narrativa em que se descrevem os principais acontecimentos que
marcaram o assédio que a segunda praça portuguesa no Magrebe sofreu, decorria o
ano de 1459. Aí são perceptíveis as dificuldades em aguentar a pressão
muçulmana, mas também em gerir as tensões inerentes à própria composição da
guarnição. Por isso, e como não podia deixar de ser, o capitão Duarte Meneses é
amplamente elogiado. Personificando a autoridade na cadeia de comando e a
encarnação da indispensável virtude da prudência,
Duarte vai fazendo a sensível gestão dos egos e ímpetos bélicos dos fidalgos
sob o seu comando, sem deixar, contudo, de dar provas da sua fortaleza, outra virtude essencial, ao desafiar o
comandante inimigo para o combate. Ao longo destas páginas são também relatadas
as façanhas individuais dos fidalgos portugueses: nas muralhas, nos combates
travados na barreira erguida diante da praça, o lugar onde mais onradamente se
podia combater, e também nas rápidas surtidas a cavalo fora das muralhas,
organizadas sobretudo para destabilizar as forças inimigas ou para atingir
determinados objectivos estratégicos.
Os relatos de enfrentamentos
militares, cercos, expedições navais, cavalgadas sobre aldeias inimigas,
preenchem quase totalmente as diversas obras de Zurara, a ponto de se ter dito
que as suas obras convertiam a crónica geral do reino na crónica dos cavaleiros
da Távola redonda da corte. Mas o que explica esta aparente devoção do autor
pelos modelos narrativos de pendor cavaleiresco? Haverá razões que expliquem os
repetitivos e estereotipados capítulos que descrevem façanhas mais ou menos
reais de forma grandiloquente? De que forma se podem entender e enquadrar estas
obras? O objectivo essencial deste artigo é analisar a produção cronística de
Zurara de acordo com o contexto em que foi elaborada, com os objectivos que
terão presidido à sua feitura e com os materiais de que o cronista dispôs. Por
isso, começarei por me referir sumariamente às diversas obras por si assinadas,
aos seus objectivos práticos, à sua relação com a chamada crónica geral do
reino e também às fontes que Zurara terá utilizado, procurando demonstrar que
todos estes aspectos são fundamentais para compreender o conteúdo e o estilo
das obras em questão. Depois, o objectivo é analisar as obras de Zurara
enquanto discurso sobre a cavalaria em Portugal no século XV. Ao realçar as
perspectivas do cronista e sua relação com aquele que seria o sistema de
valores que caracterizava a ideologia cavaleiresca nesta época, procurarei
contrapor o discurso de Zurara com outros testemunhos coevos. Uma ideologia
que, como se tentará demonstrar, tinha também implicações práticas, cuja
tradução, no caso das crónicas assinadas por Zurara, se reflecte nomeadamente
no seu carácter didáctico e de exempla,
fazendo delas uma espécie de espelhos de nobres,
mais à frente desenvolverei este conceito. Por fim, o derradeiro ponto a
considerar nesta linha de inquérito é o papel desempenhado por este conjunto de
escritos enquanto elementos de propaganda ao serviço de um dos desígnios
constantes no reinado de Afonso V: a expansão ultramarina e a cruzada.
A actividade do
cronista-mor: entre a crónica-geral do reino e as narrativas que chegaram aos
nossos dias
A actividade de Gomes Eanes de Zurara enquanto cronista-mor do
reino estendeu-se entre o final da década de 1440 e o início da década de 1470.
Entre 1449 e 1450, e com possíveis alterações até 1460, compôs a Crónica da Tomada de Ceuta.
Apesar de ser uma obra estruturada como se de uma gesta cavaleiresca se
tratasse, foi entendida pela crítica como pertencente à crónica geral do reino,
sendo neste caso a peça final da narrativa dedicada ao reinado de João I.
A Crónica dos
Feitos da Guiné, provavelmente composta entre 1452 e 1453 (ou
seja, ainda em vida do infante Henrique), e com alterações até 1464, é aquela
que suscitou mais problemas eruditos e acesas polémicas entre os especialistas
(discutindo-se, entre outras coisas, a hipótese de resultar de uma fusão entre
um livro dedicado aos feitos do infante e uma narrativa centrada nas navegações
e conquistas propriamente ditas. O texto relata as navegações e as conquistas
portuguesas promovidas pelo infante Henrique ao longo da costa ocidental
africana, apresentando inúmeras descrições de expedições militares, em
cujos interlúdios se podem encontrar descrições geográficas ou notícias de
acontecimentos marcantes como, por exemplo, o célebre episódio da primeira
grande venda de escravos negros em Lagos. As duas outras crónicas
compõem, juntamente com a narrativa dedicada à conquista de Ceuta, uma espécie
de trilogia do Norte de África. Em primeiro lugar, a crónica do Conde Pedro de Meneses,
composta entre 1458 e 1464, e, finalmente, a Crónica do conde Duarte de Meneses,
começada em 1464, depois da morte do capitão de Alcácer Ceguer, e completada
até 1469. Ambas apresentam um carácter híbrido, aliando a biografia dos dois
exemplares fidalgos e capitães ao relato pormenorizado dos cercos,
recontros e cavalgadas dos portugueses em torno de Ceuta e de Alcácer Ceguer».
In
Miguel Aguiar, As crónicas de Zurara: a corte, a aristocracia e a ideologia
cavaleiresca em Portugal no século XV, Revista Medievalista, Número 23,
Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.
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