sexta-feira, 2 de março de 2018

As crónicas de Zurara: a corte, a aristocracia e a ideologia cavaleiresca em Portugal no século XV. Miguel Aguiar. «Os relatos de enfrentamentos militares, cercos, expedições navais, cavalgadas sobre aldeias inimigas, preenchem quase totalmente as diversas obras…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«No capítulo 46 da Crónica do conde Duarte Meneses, depois de cerca de trinta páginas onde se descrevem os episódios que tiveram lugar durante o cerco muçulmano a Alcácer Ceguer, Gomes Eanes Zurara apresenta uma lista com os nomes daqueles que se a este cerco uyerom pera seruyr deos e seu Rey. O cronista realça trinta e três homens que se terão destacado, aí se encontrando, naturalmente, o illustre e muy famoso caualleyro dom Duarte de meneses, mas também outros indivíduos pertencentes a linhagens da média e alta nobreza de corte (Vasconcelos, Melo, Távora, Ataíde, Sousa, Noronha, entre outros). Depois de arrolados estes nomes, Zurara sublinha que na defesa da praça também participaram outros nobres homeens e gente, dispensando-se do trabalho de explicitar a sua identidade por nom causar fastyo. A lista é o corolário de um ciclo da narrativa em que se descrevem os principais acontecimentos que marcaram o assédio que a segunda praça portuguesa no Magrebe sofreu, decorria o ano de 1459. Aí são perceptíveis as dificuldades em aguentar a pressão muçulmana, mas também em gerir as tensões inerentes à própria composição da guarnição. Por isso, e como não podia deixar de ser, o capitão Duarte Meneses é amplamente elogiado. Personificando a autoridade na cadeia de comando e a encarnação da indispensável virtude da prudência, Duarte vai fazendo a sensível gestão dos egos e ímpetos bélicos dos fidalgos sob o seu comando, sem deixar, contudo, de dar provas da sua fortaleza, outra virtude essencial, ao desafiar o comandante inimigo para o combate. Ao longo destas páginas são também relatadas as façanhas individuais dos fidalgos portugueses: nas muralhas, nos combates travados na barreira erguida diante da praça, o lugar onde mais onradamente se podia combater, e também nas rápidas surtidas a cavalo fora das muralhas, organizadas sobretudo para destabilizar as forças inimigas ou para atingir determinados objectivos estratégicos.
Os relatos de enfrentamentos militares, cercos, expedições navais, cavalgadas sobre aldeias inimigas, preenchem quase totalmente as diversas obras de Zurara, a ponto de se ter dito que as suas obras convertiam a crónica geral do reino na crónica dos cavaleiros da Távola redonda da corte. Mas o que explica esta aparente devoção do autor pelos modelos narrativos de pendor cavaleiresco? Haverá razões que expliquem os repetitivos e estereotipados capítulos que descrevem façanhas mais ou menos reais de forma grandiloquente? De que forma se podem entender e enquadrar estas obras? O objectivo essencial deste artigo é analisar a produção cronística de Zurara de acordo com o contexto em que foi elaborada, com os objectivos que terão presidido à sua feitura e com os materiais de que o cronista dispôs. Por isso, começarei por me referir sumariamente às diversas obras por si assinadas, aos seus objectivos práticos, à sua relação com a chamada crónica geral do reino e também às fontes que Zurara terá utilizado, procurando demonstrar que todos estes aspectos são fundamentais para compreender o conteúdo e o estilo das obras em questão. Depois, o objectivo é analisar as obras de Zurara enquanto discurso sobre a cavalaria em Portugal no século XV. Ao realçar as perspectivas do cronista e sua relação com aquele que seria o sistema de valores que caracterizava a ideologia cavaleiresca nesta época, procurarei contrapor o discurso de Zurara com outros testemunhos coevos. Uma ideologia que, como se tentará demonstrar, tinha também implicações práticas, cuja tradução, no caso das crónicas assinadas por Zurara, se reflecte nomeadamente no seu carácter didáctico e de exempla, fazendo delas uma espécie de espelhos de nobres, mais à frente desenvolverei este conceito. Por fim, o derradeiro ponto a considerar nesta linha de inquérito é o papel desempenhado por este conjunto de escritos enquanto elementos de propaganda ao serviço de um dos desígnios constantes no reinado de Afonso V: a expansão ultramarina e a cruzada.

A actividade do cronista-mor: entre a crónica-geral do reino e as narrativas que chegaram aos nossos dias
A actividade de Gomes Eanes de Zurara enquanto cronista-mor do reino estendeu-se entre o final da década de 1440 e o início da década de 1470. Entre 1449 e 1450, e com possíveis alterações até 1460, compôs a Crónica da Tomada de Ceuta. Apesar de ser uma obra estruturada como se de uma gesta cavaleiresca se tratasse, foi entendida pela crítica como pertencente à crónica geral do reino, sendo neste caso a peça final da narrativa dedicada ao reinado de João I. A Crónica dos Feitos da Guiné, provavelmente composta entre 1452 e 1453 (ou seja, ainda em vida do infante Henrique), e com alterações até 1464, é aquela que suscitou mais problemas eruditos e acesas polémicas entre os especialistas (discutindo-se, entre outras coisas, a hipótese de resultar de uma fusão entre um livro dedicado aos feitos do infante e uma narrativa centrada nas navegações e conquistas propriamente ditas. O texto relata as navegações e as conquistas portuguesas promovidas pelo infante Henrique ao longo da costa ocidental africana, apresentando inúmeras descrições de expedições militares, em cujos interlúdios se podem encontrar descrições geográficas ou notícias de acontecimentos marcantes como, por exemplo, o célebre episódio da primeira grande venda de escravos negros em Lagos. As duas outras crónicas compõem, juntamente com a narrativa dedicada à conquista de Ceuta, uma espécie de trilogia do Norte de África. Em primeiro lugar, a crónica do Conde Pedro de Meneses, composta entre 1458 e 1464, e, finalmente, a Crónica do conde Duarte de Meneses, começada em 1464, depois da morte do capitão de Alcácer Ceguer, e completada até 1469. Ambas apresentam um carácter híbrido, aliando a biografia dos dois exemplares fidalgos e capitães ao relato pormenorizado dos cercos, recontros e cavalgadas dos portugueses em torno de Ceuta e de Alcácer Ceguer». In Miguel Aguiar, As crónicas de Zurara: a corte, a aristocracia e a ideologia cavaleiresca em Portugal no século XV, Revista Medievalista, Número 23, Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT